terça-feira, 6 de outubro de 2015

Dentro do poder - trechos selecionados por FHC (incluindo o da recusa do nome de Cunha como diretor da Petrobras)

Revista Piauí

Entre 1995 e 2002, Fernando Henrique Cardoso registrou de forma metódica as experiências que viveu como presidente da República. Munido de um pequeno gravador, relatava a si mesmo, em voz alta, o que lhe parecia significativo ou curioso no cotidiano do poder. FHC reconstitui encontros e conversas com amigos e aliados, diz o que pensa de uns e de outros, faz críticas (mais do que elogios), comenta notícias a respeito do governo, reclama da imprensa, manifesta inquietações, identifica interesses e aponta intrigas a seu redor.

Do extenso documento gravado resultarão cerca de 4 mil páginas, que estão sendo transcritas pela antropóloga Danielle Ardaillon, curadora do acervo do Instituto Fernando Henrique Cardoso. Parte desse material, compreendendo os anos de 1995 e 1996, vem agora a público no primeiro volume dos Diários da Presidência, a ser lançado no final deste mês pela Companhia das Letras. O livro reúne quase noventa horas de gravação decupadas de 44 fitas cassete. Os outros três volumes devem ser publicados pela mesma editora até meados de 2017.

Os trechos que a edição impressa da piauí adianta com exclusividade vão do final de novembro de 1995 ao final de abril de 1996. Os escândalos do Sivam e da Pasta Rosa, a CPI dos Bancos e o massacre de Eldorado dos Carajás foram casos rumorosos que marcaram o período, sobre os quais o diário se debruça. Há, ainda, espaço para trivialidades, de um lado, e reflexões abrangentes, de alcance histórico, de outro. Elas permeiam o testemunho de uma preocupação constante com a sustentação do governo no Congresso e o preço que isso cobra, tanto do Executivo quanto dele, pessoalmente.

Leia, a seguir, alguns dos trechos publicados na edição 109 da revista.

TERÇA-FEIRA, 28 DE NOVEMBRO DE 1995 - [...] Hoje veio a bancada do PFL de Minas tomar café da manhã comigo. Todos dizem que têm questões menores, que não querem conversar comigo, que eu designe quem tratará do assunto, e eles só querem umas nomeaçõezinhas, uns contratinhos, essas coisas, o beabá dessa política empobrecida.

Mas discutimos os grandes temas. Levantaram as dúvidas gerais, dei uma quase aula sobre a situação do Brasil, foi agradável. Não vai mudar nada enquanto não se fizerem as nomeações que estão desejosos de ter. [...]

 SÁBADO, 9 DE DEZEMBRO - [...] Tive uma longa conversa com Serra. Aí sim, fomos mais a fundo a respeito da nossa relação. Ele voltou a dizer que eu acho que foi contra o Plano Real, que não foi contra o Real, que ele não acreditava [na possibilidade política de o pôr em prática], eu sei que é isso. Voltei a explicar a ele o porquê de o Malan ser o ministro da Fazenda, Serra concorda comigo que é porque dá a sensação de estabilização. Disse-lhe o que esperava de cada um e que não adianta tentar resolver questões que não têm solução, não posso mexer agora com o Banco Central. [...]

SÁBADO, 23 DE MARÇO DE 1996 -O dia de ontem foi mais tranquilo, como todas as sextas-feiras. Nadei, como faço às segundas, quartas e sextas para me sentir um pouco melhor.

[...]

Fui a uma solenidade sobre o Dia Mundial da Água. Tomando de empréstimo uma frase de Krause, aproveitei para dizer que amanheci naquele dia com a alma lavada, em alusão às vitórias no Congresso. Fiz um discurso sobre o sentido da democracia no mundo contemporâneo, os desafios da globalização e também sobre a questão do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável. Fiz um pouco de teoria política, citei Hobbes, Montesquieu, Rousseau.

De tarde, recebi o governador Eduardo Azeredo e o prefeito Patrus,[1] brinquei com eles que o Patrus me convidou para ir a Belo Horizonte e eu disse: “Uai, só se for em dia que não tenha greve; na última vez era só onda de greve.” Ele é do PT e o pessoal do PT está tornando sua vida insuportável.

Recebi os deputados do Rio de Janeiro, o Dornelles à frente, com o [Odenir] Laprovita Vieira,[2] chefe da igreja do bispo [Edir] Macedo, mais uns dois que não sei quem são, um muito ligado ao esporte.

Na verdade o que eles querem é nomear o Eduardo Cunha diretor comercial da Petrobras! Imagina! O Eduardo Cunha foi presidente da Telerj, nós o tiramos de lá no tempo de Itamar porque ele tinha trapalhadas, ele veio da época do Collor. Eu fiz sentir que conhecia a pessoa e que sabia que havia resistência, que eles estavam atribuindo ao Eduardo Jorge; eu disse que não era ele e que há, sim, problemas com esse nome. Enfim, não cedemos à nomeação.

[...]

Estive com o Richa,[3] passei para vê-lo na casa do Zé Lírio,[4] depois o Richa veio aqui, pedi que viesse. Richa não quer sair do Paraná. Propôs uma coisa que me é simpática, de que discutíssemos a questão do parlamentarismo outra vez. Eu pretendo, em 1997, abrir a questão política e institucional. A mim não me vai nada mal que não se discuta reeleição agora. O que eu queria em 97 é fazer uma reforma política e, francamente, já tenho pensado em repor a questão do parlamentarismo com uma Presidência forte. É muita tarefa, como eu tenho registrado aqui, a de ser ao mesmo tempo chefe de governo e chefe de Estado.

 [...]

DOMINGO, 24 DE MARÇO - [...] Agora no fim da noite, encontrei a Dorothea.[5] Estava aflita pelas notícias de que o ministério dela podia ser barganhado com o PPB. Expliquei que não era assim, isso cria um ânimo ruim, desmoraliza as pessoas que estão trabalhando no ministério. É uma coisa lamentável, a gente tem que fazer frente a essas fofocas que saem na imprensa e que levam a situações desagradáveis, de que eu não gosto, de incerteza. [...]

QUINTA-FEIRA, 25 DE ABRIL - Ontem também foi um dia muito difícil. Por quê?

Hoje está claro o que aconteceu no Pará: foi um massacre.[6] Houve um incidente com um grupo de pessoas que ocupou uma estrada, o governador do Pará mandou a polícia local desobstruir essa estrada, e ela cometeu o massacre. Nada a ver diretamente com a reforma agrária. Não obstante, fica parecendo que tudo isso é consequência da falta de reforma agrária. Tudo bem, é normal que assim seja, mas essa também é uma nova política do PT e associados, de acabar jogando a culpa no governo federal, pois a reforma agrária está no plano federal. O que, aliás, é outro erro.

[...]

[...] Recebi o Luiz Carlos Santos, com quem conversei sobre os termos em que ele seria indicado líder do governo. Eu disse: “Olha Luiz Carlos, a minha ideia é essa, então você agora atue junto ao PPB.” Ele conversou com o pessoal do PPB, mas só me trouxe a resposta ontem de manhã. O PPB está com o seguinte plano. Maluf, diz o Luiz Carlos, e eventualmente também o Amin são contrários à participação no governo; Maluf quer passar para a oposição. Um [segundo] grupo, grande, organizado ao redor do Vadão [Gomes],[7] quer o Ministério da Agricultura para fins que só Deus sabe quais, e o Dornelles é a opção mais aceitável.

Parece que o PPB não aceita o Ministério da Reforma Agrária sem o Incra. Luiz Carlos sugeriu que ampliássemos a oferta e incluíssemos o Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo. Isso para mim é dolorido, por causa da Dorothea, que é uma ministra de quem eu gosto, e ela tinha que ser avisada dessa manobra.

Depois de uma reunião com Maurice Strong[8] e as ONGS sobre meio ambiente, recebi o Vicentinho[9] e quatro ou cinco dirigentes da CUT. Conversamos sobre tudo, eu gosto do Vicentinho. [Em seguida] ele até me pediu para fazer a reunião deles na biblioteca, depois que eu fosse embora. Deixei, é coisa só do Brasil! Os dirigentes máximos da CUT se reúnem na biblioteca do Palácio da Alvorada. Eles vieram trazer reivindicações dos grevistas de Brasília, a questão dos sem-terra, e havia uma manifestação, dessa vez parece que grande, aqui em Brasília, porque o momento é tenso por causa dos sem-terra. E tentam aproveitar para ver se fazem algo semelhante a impeachment, sempre a mesma história.

Depois disso, recebi para almoço o Luís Eduardo, o Serra, o Sérgio Motta e o Luiz Carlos Santos. Havia uma resistência do Serra, e minha também, a essa coisa do MICT.[10] Ainda aleguei que o MICT está com negociações importantes de investimentos, é um mau sinal, mas os políticos não pensam dessa maneira, eles pensam no número de votos no Congresso. E eu tenho que fazer as reformas. Essa é a armadilha na qual caímos. Eu, desde o início, alertei todo mundo, não vamos ficar presos só às reformas, senão vamos ficar reféns do Congresso. Não adiantou, a sociedade queria reformas. Agora estão mudando de ideia, já se fala pouco das reformas, mas estamos presos nessa armadilha do Congresso.

Então eu disse: “Está bem, de acordo, desde que primeiro se fale com a Dorothea.”

Fui para o Palácio do Planalto, diretamente para o gabinete do Clóvis, chamei o Eduardo, contei a ele, chamei o Paulo Renato e pedi que falasse com a Dorothea, porque os dois são muito amigos. Paulo Renato telefonou em seguida tentando vê-la, falou com [Enrique] Iglesias[11] para saber se havia uma vaga na Cepal.[12] Existe, de diretor-assistente. Paulo Renato falou com ela, perguntou se estava interessada em ir para o Chile. Ela estava viajando, já a caminho, e ficou de conversar num telefone mais tranquilo com o Paulo Renato. Isso foi feito.

[...]

25 DE ABRIL, MEIA NOITE - Eu disse que ontem foi um dos dias mais difíceis, e anteontem também, desde que assumi o governo. Hoje foi talvez não o mais difícil, mas o mais duro para mim. Por quê?

Pela manhã recebi o senador Amin, que me veio dizer o resultado da reunião de ontem do PPB. Eles provavelmente vão aceitar, claro, eles queriam um pouco mais de espaço no futuro, um desdobramento, com a Educação, mas enfim. Pediu que eu telefonasse para o Maluf, coisa que fiz. Maluf disse que o partido se sentia honrado de poder colaborar com o governo, grande presidente, não sei o quê, embora ele tenha, ao que consta, na véspera, pedido ao Amin que votassem contra a participação no governo. Até aí tudo bem, tudo normal. Em seguida fui para o Palácio do Planalto.

Despachos usuais de manhã. Recebi uma porção de parlamentares. Tive um almoço com o pessoal do Estado de S. Paulo, o [Aluizio] Maranhão[13] e eu conversamos sobre assuntos gerais, sobre política social, contei um pouco, mas muito pouco, a respeito do ministério, eu não podia dar furo nessa matéria, e depois do almoço voltei ao Planalto. Pela manhã eu tinha assistido a uma solenidade com o Jatene[14] sobre o tema oftalmologia e depois do almoço voltei com toda a tranquilidade para o Planalto, porque imaginei que fosse ser um dia relativamente calmo, como até uma certa hora foi.

Bom, o que aconteceu?

Cheguei ao Planalto, recebi Malan, Clóvis, Pedro Parente,[15] discutimos um pouco sobre salário mínimo, os índices, coisa que vamos discutir com mais profundidade amanhã, sexta-feira. O Malan veio com aquela de que não quer saber do Dornelles, eu expliquei as circunstâncias e tal, e ele disse que a Dorothea estava magoada. Claro, eu sei que ela está magoada, a Ana me contou que foi recebê-la no aeroporto, ela estava muito chocada com o que aconteceu, isso foi na madrugada de ontem.

[...]

Fui à casa da Dorothea. Eu tinha que ir.

Havia muita imprensa na porta, muitas crianças, entrei, estavam ela e uma irmã, eu me emocionei, ela chorou, eu também. Na verdade ela está sendo vítima de uma armadilha da história e eu também. Conversei quase três horas com a Dorothea. Deixei que ela desabafasse, me disse coisas preocupantes. Ela acha que estamos fazendo um pacto com o diabo, que o PPB não vai funcionar, que o [Francisco] Dornelles vai arrebentar o trabalho todo do Ministério de Indústria e Comércio, tem medo da corrupção [...] Dorothea é uma pessoa admirável e fui ficando com raiva de mim mesmo. Porque na verdade eu fiz a escolha de Sofia, não tinha jeito, eu sei que não tem jeito, porque ou tem o PPB, ou não passam as reformas, mas justamente em cima da Dorothea é uma coisa muito pesada para ela e para mim [...] Eu disse: “Bom, nós somos vítimas de uma proposta que é nossa, a área econômica vive afirmando que sem as reformas o Plano Real não se mantém em pé, como é que nós fazemos?” Ela sabe disso tudo, claro. Vai fazer uma nota dura de despedida, mostrando o que fez, está irritada, com toda a razão, com a baixaria de notinhas na imprensa de hoje, uma coisa nojenta, aparentemente dita pelo Delfim,[16] o Maluf teria criticado pela televisão o comportamento dela como ministra, enfim, uma coisa inaceitável. Eu vou reagir, no momento da posse do Dornelles, em algum momento, se é que se vai chegar até lá, vou reagir pela dignidade da Dorothea e, no fundo, pela minha própria.

Enfim, começo a sentir o travo amargo do poder, no seu aspecto mais podre de toma lá, dá cá, porque é isto: se eu não der algum ministério, o PPB não vota; se eu não puser o Luiz Carlos Santos, o PMDB não cimenta, e muitas vezes – o que Dorothea diz tem razão – fazemos tudo isso e eles não entregam o que prometeram. [...]

O diário completo está na piauí -109, que chega às bancas nesta segunda-feira. Por um problema técnico, a versão integral para assinantes ainda não está disponível no site. Assim que o problema for corrigido, o assinante terá acesso à versão completa.

[1] Patrus Ananias, prefeito de Belo Horizonte.

[2] Deputado pelo PPB-RJ.

[3] José Richa, ex-governador do Paraná (1983–86) e ex-senador pelo PSDB. Morreu em 2003.

[4] José Lírio Aguiar. Lobista e corretor de imóveis ligado a políticos..

[5] Dorothea Werneck, ministra da Indústria, do Comércio e do Turismo.

[6] Em 17 de abril de 1996, centenas de manifestantes sem-terra bloqueavam uma rodovia estadual, em Parauapebas (PA), protestando contra a lentidão da desapropriação de terras na região. O governador tucano Almir Gabriel (morto em 2013) ordenou que a estrada fosse desobstruída. A ação da Polícia Militar resultou na morte a tiros de dezenove sem-terra, além de outros 69 feridos. O episódio ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás.

 [7] Deputado federal (PPB-SP).

[8] Empresário e diplomata canadense, ex-secretário-geral da conferência Eco-92, no Rio de Janeiro.

[9] Presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

[10] Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo.

[11] Presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

[12] Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o Caribe.

[13] Diretor de redação do jornal.

[14]Adib Jatene, ministro da Saúde. Morreu em 2014.

[15] Secretário-executivo do Ministério da Fazenda.

[16] Delfim Netto, deputado federal (PPB-SP) e ex-ministro da Fazenda durante a ditadura militar.

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