Revista Piauí
Entre 1995 e 2002, Fernando Henrique Cardoso registrou de
forma metódica as experiências que viveu como presidente da República. Munido
de um pequeno gravador, relatava a si mesmo, em voz alta, o que lhe parecia
significativo ou curioso no cotidiano do poder. FHC reconstitui encontros e
conversas com amigos e aliados, diz o que pensa de uns e de outros, faz
críticas (mais do que elogios), comenta notícias a respeito do governo, reclama
da imprensa, manifesta inquietações, identifica interesses e aponta intrigas a
seu redor.
Do extenso documento gravado resultarão cerca de 4 mil
páginas, que estão sendo transcritas pela antropóloga Danielle Ardaillon,
curadora do acervo do Instituto Fernando Henrique Cardoso. Parte desse
material, compreendendo os anos de 1995 e 1996, vem agora a público no primeiro
volume dos Diários da Presidência, a ser lançado no final deste mês pela
Companhia das Letras. O livro reúne quase noventa horas de gravação decupadas
de 44 fitas cassete. Os outros três volumes devem ser publicados pela mesma
editora até meados de 2017.
Os trechos que a edição impressa da piauí adianta com
exclusividade vão do final de novembro de 1995 ao final de abril de 1996. Os
escândalos do Sivam e da Pasta Rosa, a CPI dos Bancos e o massacre de Eldorado
dos Carajás foram casos rumorosos que marcaram o período, sobre os quais o
diário se debruça. Há, ainda, espaço para trivialidades, de um lado, e
reflexões abrangentes, de alcance histórico, de outro. Elas permeiam o
testemunho de uma preocupação constante com a sustentação do governo no
Congresso e o preço que isso cobra, tanto do Executivo quanto dele,
pessoalmente.
Leia, a seguir, alguns dos trechos publicados na edição 109
da revista.
TERÇA-FEIRA, 28 DE NOVEMBRO DE 1995 - [...] Hoje veio a
bancada do PFL de Minas tomar café da manhã comigo. Todos dizem que têm
questões menores, que não querem conversar comigo, que eu designe quem tratará
do assunto, e eles só querem umas nomeaçõezinhas, uns contratinhos, essas
coisas, o beabá dessa política empobrecida.
Mas discutimos os grandes temas. Levantaram as dúvidas
gerais, dei uma quase aula sobre a situação do Brasil, foi agradável. Não vai
mudar nada enquanto não se fizerem as nomeações que estão desejosos de ter.
[...]
SÁBADO, 9 DE DEZEMBRO
- [...] Tive uma longa conversa com Serra. Aí sim, fomos mais a fundo a
respeito da nossa relação. Ele voltou a dizer que eu acho que foi contra o
Plano Real, que não foi contra o Real, que ele não acreditava [na possibilidade
política de o pôr em prática], eu sei que é isso. Voltei a explicar a ele o
porquê de o Malan ser o ministro da Fazenda, Serra concorda comigo que é porque
dá a sensação de estabilização. Disse-lhe o que esperava de cada um e que não
adianta tentar resolver questões que não têm solução, não posso mexer agora com
o Banco Central. [...]
SÁBADO, 23 DE MARÇO DE 1996 -O dia de ontem foi mais
tranquilo, como todas as sextas-feiras. Nadei, como faço às segundas, quartas e
sextas para me sentir um pouco melhor.
[...]
Fui a uma solenidade sobre o Dia Mundial da Água. Tomando de
empréstimo uma frase de Krause, aproveitei para dizer que amanheci naquele dia
com a alma lavada, em alusão às vitórias no Congresso. Fiz um discurso sobre o
sentido da democracia no mundo contemporâneo, os desafios da globalização e
também sobre a questão do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável. Fiz um
pouco de teoria política, citei Hobbes, Montesquieu, Rousseau.
De tarde, recebi o governador Eduardo Azeredo e o prefeito
Patrus,[1] brinquei com eles que o Patrus me convidou para ir a Belo Horizonte
e eu disse: “Uai, só se for em dia que não tenha greve; na última vez era só
onda de greve.” Ele é do PT e o pessoal do PT está tornando sua vida
insuportável.
Recebi os deputados do Rio de Janeiro, o Dornelles à frente,
com o [Odenir] Laprovita Vieira,[2] chefe da igreja do bispo [Edir] Macedo,
mais uns dois que não sei quem são, um muito ligado ao esporte.
Na verdade o que eles querem é nomear o Eduardo Cunha
diretor comercial da Petrobras! Imagina! O Eduardo Cunha foi presidente da
Telerj, nós o tiramos de lá no tempo de Itamar porque ele tinha trapalhadas,
ele veio da época do Collor. Eu fiz sentir que conhecia a pessoa e que sabia
que havia resistência, que eles estavam atribuindo ao Eduardo Jorge; eu disse
que não era ele e que há, sim, problemas com esse nome. Enfim, não cedemos à
nomeação.
[...]
Estive com o Richa,[3] passei para vê-lo na casa do Zé
Lírio,[4] depois o Richa veio aqui, pedi que viesse. Richa não quer sair do
Paraná. Propôs uma coisa que me é simpática, de que discutíssemos a questão do
parlamentarismo outra vez. Eu pretendo, em 1997, abrir a questão política e
institucional. A mim não me vai nada mal que não se discuta reeleição agora. O
que eu queria em 97 é fazer uma reforma política e, francamente, já tenho
pensado em repor a questão do parlamentarismo com uma Presidência forte. É
muita tarefa, como eu tenho registrado aqui, a de ser ao mesmo tempo chefe de
governo e chefe de Estado.
[...]
DOMINGO, 24 DE MARÇO - [...] Agora no fim da noite,
encontrei a Dorothea.[5] Estava aflita pelas notícias de que o ministério dela
podia ser barganhado com o PPB. Expliquei que não era assim, isso cria um ânimo
ruim, desmoraliza as pessoas que estão trabalhando no ministério. É uma coisa
lamentável, a gente tem que fazer frente a essas fofocas que saem na imprensa e
que levam a situações desagradáveis, de que eu não gosto, de incerteza. [...]
QUINTA-FEIRA, 25 DE ABRIL - Ontem também foi um dia muito
difícil. Por quê?
Hoje está claro o que aconteceu no Pará: foi um massacre.[6]
Houve um incidente com um grupo de pessoas que ocupou uma estrada, o governador
do Pará mandou a polícia local desobstruir essa estrada, e ela cometeu o
massacre. Nada a ver diretamente com a reforma agrária. Não obstante, fica
parecendo que tudo isso é consequência da falta de reforma agrária. Tudo bem, é
normal que assim seja, mas essa também é uma nova política do PT e associados,
de acabar jogando a culpa no governo federal, pois a reforma agrária está no
plano federal. O que, aliás, é outro erro.
[...]
[...] Recebi o Luiz Carlos Santos, com quem conversei sobre
os termos em que ele seria indicado líder do governo. Eu disse: “Olha Luiz
Carlos, a minha ideia é essa, então você agora atue junto ao PPB.” Ele
conversou com o pessoal do PPB, mas só me trouxe a resposta ontem de manhã. O
PPB está com o seguinte plano. Maluf, diz o Luiz Carlos, e eventualmente também
o Amin são contrários à participação no governo; Maluf quer passar para a
oposição. Um [segundo] grupo, grande, organizado ao redor do Vadão [Gomes],[7]
quer o Ministério da Agricultura para fins que só Deus sabe quais, e o
Dornelles é a opção mais aceitável.
Parece que o PPB não aceita o Ministério da Reforma Agrária
sem o Incra. Luiz Carlos sugeriu que ampliássemos a oferta e incluíssemos o
Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo. Isso para mim é dolorido,
por causa da Dorothea, que é uma ministra de quem eu gosto, e ela tinha que ser
avisada dessa manobra.
Depois de uma reunião com Maurice Strong[8] e as ONGS sobre
meio ambiente, recebi o Vicentinho[9] e quatro ou cinco dirigentes da CUT.
Conversamos sobre tudo, eu gosto do Vicentinho. [Em seguida] ele até me pediu
para fazer a reunião deles na biblioteca, depois que eu fosse embora. Deixei, é
coisa só do Brasil! Os dirigentes máximos da CUT se reúnem na biblioteca do
Palácio da Alvorada. Eles vieram trazer reivindicações dos grevistas de
Brasília, a questão dos sem-terra, e havia uma manifestação, dessa vez parece
que grande, aqui em Brasília, porque o momento é tenso por causa dos sem-terra.
E tentam aproveitar para ver se fazem algo semelhante a impeachment, sempre a
mesma história.
Depois disso, recebi para almoço o Luís Eduardo, o Serra, o
Sérgio Motta e o Luiz Carlos Santos. Havia uma resistência do Serra, e minha
também, a essa coisa do MICT.[10] Ainda aleguei que o MICT está com negociações
importantes de investimentos, é um mau sinal, mas os políticos não pensam dessa
maneira, eles pensam no número de votos no Congresso. E eu tenho que fazer as
reformas. Essa é a armadilha na qual caímos. Eu, desde o início, alertei todo
mundo, não vamos ficar presos só às reformas, senão vamos ficar reféns do
Congresso. Não adiantou, a sociedade queria reformas. Agora estão mudando de
ideia, já se fala pouco das reformas, mas estamos presos nessa armadilha do
Congresso.
Então eu disse: “Está bem, de acordo, desde que primeiro se
fale com a Dorothea.”
Fui para o Palácio do Planalto, diretamente para o gabinete
do Clóvis, chamei o Eduardo, contei a ele, chamei o Paulo Renato e pedi que
falasse com a Dorothea, porque os dois são muito amigos. Paulo Renato telefonou
em seguida tentando vê-la, falou com [Enrique] Iglesias[11] para saber se havia
uma vaga na Cepal.[12] Existe, de diretor-assistente. Paulo Renato falou com
ela, perguntou se estava interessada em ir para o Chile. Ela estava viajando,
já a caminho, e ficou de conversar num telefone mais tranquilo com o Paulo
Renato. Isso foi feito.
[...]
25 DE ABRIL, MEIA NOITE - Eu disse que ontem foi um dos dias
mais difíceis, e anteontem também, desde que assumi o governo. Hoje foi talvez
não o mais difícil, mas o mais duro para mim. Por quê?
Pela manhã recebi o senador Amin, que me veio dizer o
resultado da reunião de ontem do PPB. Eles provavelmente vão aceitar, claro,
eles queriam um pouco mais de espaço no futuro, um desdobramento, com a
Educação, mas enfim. Pediu que eu telefonasse para o Maluf, coisa que fiz.
Maluf disse que o partido se sentia honrado de poder colaborar com o governo,
grande presidente, não sei o quê, embora ele tenha, ao que consta, na véspera,
pedido ao Amin que votassem contra a participação no governo. Até aí tudo bem,
tudo normal. Em seguida fui para o Palácio do Planalto.
Despachos usuais de manhã. Recebi uma porção de
parlamentares. Tive um almoço com o pessoal do Estado de S. Paulo, o [Aluizio]
Maranhão[13] e eu conversamos sobre assuntos gerais, sobre política social,
contei um pouco, mas muito pouco, a respeito do ministério, eu não podia dar
furo nessa matéria, e depois do almoço voltei ao Planalto. Pela manhã eu tinha
assistido a uma solenidade com o Jatene[14] sobre o tema oftalmologia e depois
do almoço voltei com toda a tranquilidade para o Planalto, porque imaginei que
fosse ser um dia relativamente calmo, como até uma certa hora foi.
Bom, o que aconteceu?
Cheguei ao Planalto, recebi Malan, Clóvis, Pedro
Parente,[15] discutimos um pouco sobre salário mínimo, os índices, coisa que
vamos discutir com mais profundidade amanhã, sexta-feira. O Malan veio com
aquela de que não quer saber do Dornelles, eu expliquei as circunstâncias e
tal, e ele disse que a Dorothea estava magoada. Claro, eu sei que ela está
magoada, a Ana me contou que foi recebê-la no aeroporto, ela estava muito
chocada com o que aconteceu, isso foi na madrugada de ontem.
[...]
Fui à casa da Dorothea. Eu tinha que ir.
Havia muita imprensa na porta, muitas crianças, entrei,
estavam ela e uma irmã, eu me emocionei, ela chorou, eu também. Na verdade ela
está sendo vítima de uma armadilha da história e eu também. Conversei quase
três horas com a Dorothea. Deixei que ela desabafasse, me disse coisas
preocupantes. Ela acha que estamos fazendo um pacto com o diabo, que o PPB não
vai funcionar, que o [Francisco] Dornelles vai arrebentar o trabalho todo do
Ministério de Indústria e Comércio, tem medo da corrupção [...] Dorothea é uma
pessoa admirável e fui ficando com raiva de mim mesmo. Porque na verdade eu fiz
a escolha de Sofia, não tinha jeito, eu sei que não tem jeito, porque ou tem o
PPB, ou não passam as reformas, mas justamente em cima da Dorothea é uma coisa
muito pesada para ela e para mim [...] Eu disse: “Bom, nós somos vítimas de uma
proposta que é nossa, a área econômica vive afirmando que sem as reformas o
Plano Real não se mantém em pé, como é que nós fazemos?” Ela sabe disso tudo,
claro. Vai fazer uma nota dura de despedida, mostrando o que fez, está
irritada, com toda a razão, com a baixaria de notinhas na imprensa de hoje, uma
coisa nojenta, aparentemente dita pelo Delfim,[16] o Maluf teria criticado pela
televisão o comportamento dela como ministra, enfim, uma coisa inaceitável. Eu
vou reagir, no momento da posse do Dornelles, em algum momento, se é que se vai
chegar até lá, vou reagir pela dignidade da Dorothea e, no fundo, pela minha
própria.
Enfim, começo a sentir o travo amargo do poder, no seu
aspecto mais podre de toma lá, dá cá, porque é isto: se eu não der algum
ministério, o PPB não vota; se eu não puser o Luiz Carlos Santos, o PMDB não cimenta,
e muitas vezes – o que Dorothea diz tem razão – fazemos tudo isso e eles não
entregam o que prometeram. [...]
O diário completo está na piauí -109, que chega às bancas
nesta segunda-feira. Por um problema técnico, a versão integral para assinantes
ainda não está disponível no site. Assim que o problema for corrigido, o
assinante terá acesso à versão completa.
[1] Patrus Ananias, prefeito de Belo Horizonte.
[2] Deputado pelo PPB-RJ.
[3] José Richa, ex-governador do Paraná (1983–86) e
ex-senador pelo PSDB. Morreu em 2003.
[4] José Lírio Aguiar. Lobista e corretor de imóveis ligado
a políticos..
[5] Dorothea Werneck, ministra da Indústria, do Comércio e
do Turismo.
[6] Em 17 de abril de 1996, centenas de manifestantes
sem-terra bloqueavam uma rodovia estadual, em Parauapebas (PA), protestando
contra a lentidão da desapropriação de terras na região. O governador tucano
Almir Gabriel (morto em 2013) ordenou que a estrada fosse desobstruída. A ação
da Polícia Militar resultou na morte a tiros de dezenove sem-terra, além de
outros 69 feridos. O episódio ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos
Carajás.
[7] Deputado federal
(PPB-SP).
[8] Empresário e diplomata canadense, ex-secretário-geral da
conferência Eco-92, no Rio de Janeiro.
[9] Presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
[10] Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo.
[11] Presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID).
[12] Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o
Caribe.
[13] Diretor de redação do jornal.
[14]Adib Jatene, ministro da Saúde. Morreu em 2014.
[15] Secretário-executivo do Ministério da Fazenda.
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