Dica do Helio Garcia, no Blog do Giulio Sanmartini,
publicada na “Super Interessante”
A ciência do palavrão
Por que diabos “merda” é palavrão? Aliás, por que a palavra
“diabos”, indizível décadas atrás, deixou de ser um? Outra: você já deve ter
tropeçado numa pedra e, para revidar, xingou-a de algo como “filha-da-puta”,
mesmo sabendo que a dita nem mãe tem.
Pois é: há mais mistérios no universo dos palavrões do que o
senso comum imagina. Mas a ciência ajuda a desvendá-los. Pesquisas recentes
mostram que as palavras sujas nascem em um mundo à parte dentro do cérebro.
Enquanto a linguagem comum e o pensamento consciente ficam a cargo da parte
mais sofisticada da massa cinzenta, o neocórtex, os palavrões “moram” nos
porões da cabeça. Mais exatamente no sistema límbico. É o fundo do cérebro, a
parte que controla nossas emoções. Trata-se de uma zona primitiva: se o nosso
neocórtex é mais avantajado que o dos outros mamíferos, o sistema límbico é bem
parecido. Nossa parte animal fica lá.
E sai de vez em quando, na forma de palavrões. A medicina
ajuda a entender isso. Veja o caso da síndrome de Tourette. Essa doença acomete
pessoas que sofreram danos no gânglio basal, a parte do cérebro cuja função é
manter o sistema límbico comportado. Elas passam a ter tiques nervosos o tempo
todo. E, às vezes, mais do que isso. De 10 a 20% dos pacientes ficam com uma
característica inusitada: não param de falar palavrão. Isso mostra que, sem o
gânglio basal para tomar conta, o sistema límbico se solta todo. E os palavrões
saem como se fossem tiques nervosos na forma de palavras.
Mas você não precisa ter lesão nenhuma para se descontrolar
de vez em quando, claro. Como dissemos, basta tropeçar numa pedra para que ela
corra o sério risco de ouvir um desaforo. Se dependesse do pensamento
consciente, ninguém nunca ofenderia uma coisa inanimada. Mas o sistema límbico
é burro. Burro e sincero. Justamente por não pensar, quando essa parte animal
do cérebro “fala”, ela consegue traduzir certas emoções com uma intensidade
inigualável. Os palavrões, por esse ponto de vista, são poesia no sentido mais
profundo da palavra. Duvida?
Então pense em uma palavra forte. “Paixão”, por exemplo. Ela
tem substância, sim, mas está longe de transmitir toda a carga emocional da
paixão propriamente dita. Mas com um grande e gordo “puta que o pariu” a
história é outra. Ele vai direto ao ponto, transmite a emoção do sistema
límbico de quem fala direto para o de quem ouve. Por isso mesmo, alguns
pesquisadores consideram o palavrão até mais sofisticado que a linguagem comum.
É o que pensa o psicólogo cognitivo Steven Pinker, da
Universidade Harvard. Em seu livro mais recente, Stuff of Thought (“Coisas do
Pensamento”, inédito em português), ele escreveu: “Mais do que qualquer outra
forma de linguagem, xingar recruta nossas faculdades de expressão ao máximo: o
poder de combinação da sintaxe; a força evocativa da metáfora e a carga
emocional das nossas atitudes, tanto as pensadas quanto impensadas”.
Traduzindo: palavrões são foda.
Tão foda que nem os usamos só para xingar. Eles expressam
qualquer emoção indizível, seja ruim, seja boa. Então, se um jogador de futebol
grita palavrões depois de marcar um gol, ele não o faz por ser mal-educado, mas
porque só uma palavra saída direto do sistema límbico consegue transmitir o que
ele está sentindo. Outra prova de eficácia é que eles estreitam nossos laços
sociais. Se você xingar alguém gratuitamente e o sujeito não ficar bravo,
significa que ele é seu amigo. Daí que grupos de homens adoram usar
cumprimentos como “Fala, cuzão!” Isso deixa claro que todos ali são íntimos.
“Perceber o xingamento como agressão ou ferramenta social depende do contexto”,
disse o psicólogo Timothy Jay, da Faculdade de Artes Liberais de Massachusetts,
para a revista americana New Scientist. “Num vestiário masculino, por exemplo,
quem não xinga é o ‘panaca’”.
Timothy Jay sabe do que está falando. É um expert em
palavrões. Ele passou as últimas 3 décadas anotando as sujeiras que ouvia em
lugares públicos. Juntou mais de 10 mil ocorrências. E colocou em números
cientificamente rigorosos (na medida do possível) aquilo que você já sabia:
“foda” e “merda” (ou “fuck” e “shit”) correspondem à metade de todos os
palavrões ditos – sem contar suas variantes.
Não é à toa. Como os palavrões nascem na parte primitiva do
cérebro, quase todos versam sobre as duas coisas mais básicas da existência:
Veja só. “Merda” é um palavrão mais ofensivo que “mijo”, por
sua vez mais pesado que “cuspe”, que nem palavrão é. Se você fosse excretar
alguma dessas coisas na rua, essa também seria a ordem de impacto nas outras
pessoas – do mais para o menos chocante. Coincidência? “Não. Não é por acaso
que as substâncias que mais dão nojo também sejam vetores de doenças. A reação
de repulsa à palavra é o desejo de não tocar ou comer a coisa”, afirma o médico
americano Val Curtis no livro Is Hygiene in Our Genes? (“A Higiene Está nos
Nossos Genes?”, sem tradução para português).
Se é fácil entender por que excrescências são palavrões, não
dá para dizer o mesmo sobre os termos ligados ao sexo. Afinal, sexo é bom, não?
Não necessariamente. “Ele traz altos riscos, incluindo doenças, exploração,
pedofilia e estupro. Esses males deixaram marcas nos nossos costumes e
emoções”, diz Pinker. Foquemos em “estupro”. Do ponto de vista evolutivo, ele
foi vantajoso para os homens. Pegar mulheres à força permitia que um macho
fizesse dezenas, centenas de filhos, coisa que contou pontos no jogo da
evolução. Já para as mulheres isso é o inferno. O papel delas é ter poucos, e
bons, filhos. Então selecionar o pai é fundamental, e engravidar de alguém que
a violentou, um baita prejuízo.
Daí foi natural que a expressão “foder alguém” virasse
sinônimo de “fazer um grande mal”. Para entender isso melhor, complete a frase
“João ___ Maria” para mostrar que eles transaram, usando apenas uma palavra.
Quase todas as opções para preencher a lacuna são palavrões. Já os termos leves
para relação sexual sempre carregam a preposição “com”: você pode dizer que
João fez amor com Maria, dormiu com, fez sexo com, transou com... Todos os
exemplos indicam que João e Maria participaram do sexo de igual para igual. Com
os palavrões, a história é outra. Eles deixam claro: Maria está sempre numa
posição inferior.
Note que a origem de “fodido” e seus equivalente não envolve
o sexo apenas como uma ferramenta de submissão de homens contra mulheres. Mas
de homens contra homens também. O estupro homossexual sempre foi, e segue
sendo, uma forma eficaz de deixar claro num bando de machos quem é o chefe – a
violência sexual dentro dos presídios está aí para provar. A coisa é tão
arraigada que até uma palavra inocente hoje, como “coitado” ou “tadinho”, sua
variante mais fofa, significa “aquele que sofreu o coito”.
Mas espera aí: como algo tão barra-pesada vira uma palavra
até bonitinha? É o que vamos ver.
“Que se dane!”, “diabos” ou “vá para o inferno” já foi algo
mais impactante. Claro: até décadas atrás não havia prognóstico pior que não ir
para o céu quando morresse. Então, quando a idéia era insultar para valer, nada
melhor que mandar alguém para o inferno. “A perda de eficácia das palavras
tabus relacionadas à religião é uma óbvia conseqüência da secularização da
cultura ocidental”, afirma Pinker.
Outra: quando “câncer” era sinônimo de morte, também não
podia ser dita livremente. Nos obi- tuários, a pessoa não morria de câncer, mas
de “uma longa enfermidade”. Com os avanços no tratamento, a coisa mudou de
figura, e câncer, apesar de ainda dar calafrios, virou uma palavra bem mais
corriqueira. As doenças em geral, na verdade, passaram por um processo
parecido. Em Romeu e Julieta, de Shakespeare, por exemplo, há uma passagem
dizendo: “Que a peste invada as casas de ambos!” Uma baita ofensa no século 16,
quando a peste bubônica ainda era uma ameaça na Europa. Mas agora, no mundo
limpo e cheio de antibióticos que a gente conhece, o xingamento shakespeariano
parece inócuo.
E também há o inverso: palavras normais que viram tabu. Em
algum momento da história do português um sujeito chamou pênis de “pau”. E uma
palavra originalmente “pura” enveredava para o mau caminho. Nada mais comum:
hoje ninguém se lembra mais de “caralho” como sendo a cestinha que ficava no
alto do mastro dos navios, ou “boceta” como uma caixa pequena e redonda. “A
palavra vira tabu quando ganha um sentido simbólico”, afirma o etimólogo
Deoníoso da Silva, da Universidade Estácio de Sá.
Mais uma mostra de como os palavrões flutuam com o espírito
do tempo são as expressões que são tabu num lugar e não têm nada de mais em
outro. Se você for a Portugal, vai ver que eles preferem cu e rabo para
referirem-se às nádegas, e que coram quando alguém fala “broche” (o termo sujo
para sexo oral).
Mas quem decide o que é palavrão e o que não é? “Isso depende
dos mecanismos de conservação da língua, que são o ensino, os meios de
comunicação e os dicionários. As palavras relacionadas a sexo que não são
palavrões são quase todas da literatura científica, como pênis e ânus”, explica
a lingüista Wânia de Aragão, da Universidade de Brasília. Não que isso impeça
termos científicos de hoje, como “pedófilo”, de virar palavra suja um dia. A
palavra “esquizofrênico”, por exemplo, nasceu na ciência, mas agora, com o
aumento dos dignósticos de doenças mentais, caiu na boca do povo. E está
virando xingamento.
Mas saber quais serão os palavrões do futuro é tão
impossível quanto prever o futuro da tecnologia, da humanidade ou do
Corinthians. O escritor e comediante inglês Douglas Adams, resumiu isso bem no
clássico O Guia do Mochileiro das Galáxias. O livro diz que o palavrão mais
sujo entre os habitantes dos outros planetas da Via Láctea é uma expressão bem
conhecida dos terráqueos: “bélgica”.
(argento) ... é isso, do tálamo, viceral, num paroxísmo, a porra sai, ...
ResponderExcluir(argento) ... por falar em merda: - por que as igrejas não pagam impostos e a SUIPA, que presta relevantes serviços à sociedade, deve cerca de 15 milhões ...
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