Janine “fazendo” História... |
Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa (historiadora): História
sem tempo
Renato Janine, o Breve, transitou pela porta giratória do
MEC em menos de seis meses. No curto reinado, antes da devolução do ministério
a um “profissional da política”, teve tempo para proclamar a Base Nacional
Comum (BNC), que equivale a um decreto ideológico de refundação do Brasil. Sob
os auspícios do filósofo, a História foi abolida das escolas. No seu lugar,
emerge uma sociologia do multiculturalismo destinada a apagar a lousa na qual
gerações de professores ensinaram o processo histórico que conduziu à formação
das modernas sociedades ocidentais, fundadas no princípio da igualdade dos
indivíduos perante a lei.
O ensino de História, oficializado pelo Estado-Nação no
século XIX, fixou o paradigma da narrativa histórica baseado no esquema
temporal clássico: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade
Contemporânea. A crítica historiográfica contesta esse paradigma, impregnado de
positivismo, evolucionismo e eurocentrismo, desde os anos 60. Mas o MEC joga
fora o nenê junto com a água do banho, eliminando o que caracteriza o ensino de
História: uma narrativa que se organiza na perspectiva temporal. Segundo a BNC,
no 6º ano do ensino fundamental, alunos de 11 anos são convidados a
“problematizar” o “modelo quadripartite francês”, que nunca mais reaparecerá.
Muito depois, no ensino médio, aquilo que se chamava História Geral surgirá sob
a forma fragmentária do estudo dos “mundos ameríndios, africanos e
afro-brasileiros” (1º ano), dos “mundos americanos” (2º ano) e dos “mundos
europeus e asiáticos” (3º ano).
O esquema temporal clássico reconhecia que a mundialização
da história humana derivou da expansão dos estados europeus, num processo
ritmado pelas Navegações, pelo Iluminismo, pela Revolução Industrial e pelo
imperialismo. A tradição greco-romana, o cristianismo, o comércio, as
tecnologias modernas e o advento da ideia de cidadania difundiram-se nesse
amplo movimento que enlaçou, diferenciadamente, o mundo inteiro. A BNC rasga
todas essas páginas, para inaugurar o ensino de histórias paralelas de povos
separados pela muralha da “cultura”. Os educadores do multiculturalismo que a
elaboraram compartilham com os neoconservadores o paradigma do “choque de
civilizações”, apenas invertendo os sinais de positividade e negatividade.
A ordem do dia é esculpir um Brasil descontaminado de
heranças europeias. Na cartilha da BNC, o Brasil situa-se na intersecção dos
“mundos ameríndios” com os “mundos afro-brasileiros”, sendo a Conquista,
exclusivamente, uma irrupção genocida contra os povos autóctones e os povos
africanos deslocados para a América Portuguesa. A mesma cartilha, com a
finalidade de negar legitimidade às histórias nacionais, figura os “mundos
americanos” como uma coleção das diásporas africana, indígena, asiática e
europeia, “entre os séculos 16 e 21”. O conceito de nação deve ser derrubado
para ceder espaço a uma história de grupos étnicos e culturais encaixados, pela
força, na moldura das fronteiras políticas contemporâneas.
A historiografia liberal articula-se em torno do indivíduo e
da política. A historiografia marxista organiza-se ao redor das classes sociais
e da economia. Nas suas diferenças, ambas valorizam a historicidade, o
movimento, a sucessão de “causas” e “consequências”. Já a Sociologia do
Multiculturalismo é uma revolta reacionária contra a escritura da História.
Seus sujeitos históricos são grupos etnoculturais sempre iguais a si mesmos,
fechados na concha da tradição, que percorrem como cometas solitários o vazio
do tempo. Na História da BNC, o que existe é, apenas, um recorrente cotejo
moralista entre algoz e vítima, perfeito para o discurso de professores
convertidos em doutrinadores.
Na BNC, não há menção à Grécia Clássica: sem a Ágora, os
alunos nunca ouvirão falar das raízes do conceito de cidadania. Igualmente,
inexistem referências sobre o medievo das catedrais, das cidades e do comércio:
sem elas, nossas escolas cancelam o ensino do “império da Igreja” e das
rupturas que originaram a modernidade. O MEC também decidiu excluir da
narrativa histórica o Absolutismo e o Iluminismo, cancelando o estudo da
formação do Estado-Nação. A Revolução Francesa, por sua vez, surge apenas de
passagem, no 8º ano, como apêndice da análise das “incorporações do pensamento
liberal no Brasil”.
Sob o sólido silêncio de nossas universidades, o MEC endossa
propostas pedagógicas avessas à melhor produção universitária, que geram
professores “obsoletos” em seus conhecimentos e métodos. Marc Bloch disse que
“a História é a ciência dos homens no tempo”. Suas obras consagradas, bem como
as de tantos outros, como Peter Burke, Jules Michelet, Perry Anderson, Maurice
Dobb, Eric Hobsbawm, Joseph Ki-Zerbo, Marc Ferro, Albert Hourani, Caio Prado
Jr., Sérgio Buarque de Holanda e José Murilo de Carvalho, não servem mais como
fontes de inspiração para o nosso ensino. A partir de agora, em linha com o
decreto firmado pelo ministro antes da defenestração, os professores devem
curvar-se a autores obscuros, que ganharão selos de autenticidade política
emitidos pelo MEC.
Não é incompetência, mas projeto político. Num parecer do
Conselho Nacional de Educação de 2004, está escrito que o ensino de história e
cultura afro-brasileira e africana “deve orientar para o esclarecimento de
equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Equívocos! No altar de uma
educação ideológica, voltada para promover a “cultura”, a etnia e a raça, o MEC
imolava o universalismo, incinerando a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. A trajetória iniciada por meio daquele parecer conclui-se com uma BNC
que descarta a historicidade para ocultar os princípios originários da
democracia.
Doutrinação escolar? A intenção é essa, mas o verdadeiro
resultado da abolição da História será um novo e brutal retrocesso nos
indicadores de aprendizagem.
(argento) ... Orwell explica ...
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