Apesar de achar estranhas as cada vez mais recorrentes reclamações
dos ateus se dizendo vítimas de preconceitos, esse artigo de Eliane Brum de 2011
dá uma boa noção do absurdo que é hoje essa “fundamentalização” da vida de um
modo geral que está sendo implantada pelos evangélicos no Brasil.
A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico
Eliane Brum
O diálogo aconteceu entre uma jornalista e um taxista na
última sexta-feira. Ela entrou no táxi do ponto do Shopping Villa Lobos, em São
Paulo, por volta das 19h30. Como estava escuro demais para ler o jornal, como
ela sempre faz, puxou conversa com o motorista de táxi, como ela nunca faz.
Falaram do trânsito (inevitável em São Paulo) que, naquela sexta-feira chuvosa
e às vésperas de um feriadão, contra todos os prognósticos, estava bom. Depois,
outro taxista emparelhou o carro na Pedroso de Moraes para pedir um “Bom Ar”
emprestado ao colega, porque tinha carregado um passageiro “com cheiro de
jaula”. Continuaram, e ela comentou que trabalharia no feriado. Ele perguntou o
que ela fazia. “Sou jornalista”, ela disse. E ele: “Eu quero muito melhorar o
meu português. Estudei, mas escrevo tudo errado”. Ele era jovem, menos de 30
anos. “O melhor jeito de melhorar o português é lendo”, ela sugeriu. “Eu estou
lendo mais agora, já li quatro livros neste ano. Para quem não lia nada...”,
ele contou. “O importante é ler o que você gosta”, ela estimulou. “O que eu
quero agora é ler a Bíblia”. Foi neste ponto que o diálogo conquistou o direito
a seguir com travessões.
- Você é evangélico?
– ela perguntou.
- Sou! – ele
respondeu, animado.
- De que igreja?
- Tenho ido na
Novidade de Vida. Mas já fui na Bola de Neve.
- Da Novidade de Vida eu nunca tinha ouvido falar, mas já li
matérias sobre a Bola de Neve. É bacana a Novidade de Vida?
- Tou gostando muito. A Bola de Neve também é bem legal. De
vez em quando eu vou lá.
- Legal.
- De que religião você é?
- Eu não tenho religião. Sou ateia.
- Deus me livre! Vai lá na Bola de Neve.
- Não, eu não sou religiosa. Sou ateia.
- Deus me livre!
- Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não
respeita a minha.
- (riso nervoso).
- Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com
respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar
melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé?
- Por que as boas ações não salvam.
- Não?
- Só Jesus salva. Se você não aceitar Jesus, não será salva.
- Mas eu não quero ser salva.
- Deus me livre!
- Eu não acredito em salvação. Acredito em viver cada dia da
melhor forma possível.
- Acho que você é espírita.
- Não, já disse a você. Sou ateia.
- É que Jesus não te pegou ainda. Mas ele vai pegar.
- Olha, sinceramente, acho difícil que Jesus vá me pegar.
Mas sabe o que eu acho curioso? Que eu não queira tirar a sua fé, mas você
queira tirar a minha não fé. Eu não acho que você seja pior do que eu por ser
evangélico, mas você parece achar que é melhor do que eu porque é evangélico.
Não era Jesus que pregava a tolerância?
- É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto...
O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas
parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida. Mas ele fora doutrinado para
acreditar que um ateu é uma espécie de Satanás. Como resolver esse impasse?
(Talvez ele tenha lembrado, naquele momento, que o pastor avisara que o diabo
assumia formas muito sedutoras para roubar a alma dos crentes. Mas, como não dá
para ler pensamentos, só é possível afirmar que o taxista parecia viver um
embate interno: ele não conseguia se convencer de que a mulher que agora falava
sobre o cartão do banco que tinha perdido era a personificação do mal.)
Chegaram ao destino depois de mais algumas conversas
corriqueiras. Ao se despedir, ela agradeceu a corrida e desejou a ele um bom
fim de semana e uma boa noite. Ele retribuiu. E então, não conseguiu conter-se:
- Veja se aparece lá na igreja! – gritou, quando ela abria a
porta.
- Veja se vira ateu! – ela retribuiu, bem humorada, antes de
fechá-la.
Ainda deu tempo de ouvir uma risada nervosa.
A parábola do taxista me faz pensar em como a vida dos ateus
poderá ser dura num Brasil cada vez mais evangélico – ou cada vez mais
neopentecostal, já que é esta a característica das igrejas evangélicas que mais
crescem. O catolicismo – no mundo contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma
relação de tolerância com o ateísmo. Por várias razões. Entre elas, a de que é
possível ser católico – e não praticante. O fato de você não frequentar a
igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil católico nem
condena ninguém ao inferno. Outra razão importante é que o catolicismo está
disseminado na cultura, entrelaçado a uma forma de ver o mundo que influencia
inclusive os ateus. Ser ateu num país de maioria católica nunca ameaçou a
convivência entre os vizinhos. Ou entre taxistas e passageiros.
Já com os evangélicos neopentecostais, caso das inúmeras
igrejas que se multiplicam com nomes cada vez mais imaginativos pelas esquinas
das grandes e das pequenas cidades, pelos sertões e pela floresta amazônica, o
caso é diferente. E não faço aqui nenhum juízo de valor sobre a fé católica ou
a dos neopentecostais. Cada um tem o direito de professar a fé que quiser –
assim como a sua não fé. Meu interesse é tentar compreender como essa porção
cada vez mais numerosa do país está mudando o modo de ver o mundo e o modo de
se relacionar com a cultura. Está mudando a forma de ser brasileiro.
Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações
evangélicas? Porque as neopentecostais – e não falo aqui nenhuma novidade – são
constituídas no modo capitalista. Regidas, portanto, pelas leis de mercado. Por
isso, nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É
possível, como o taxista exemplifica muito bem, pular de uma para outra, como
um consumidor diante de vitrines que tentam seduzi-lo a entrar na loja pelo
brilho de suas ofertas. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel”, ao gerir a
igreja como um modelo de negócio, obriga as neopentecostais a uma disputa de
mercado cada vez mais agressiva e também a buscar fatias ainda inexploradas. É
preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas
abertas – para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem
consumidos por doações em dinheiro ou em espécie. O templo é um shopping da fé,
com as vantagens e as desvantagens que isso implica.
É também por essa razão que a Igreja Católica, que em
períodos de sua longa história atraiu fiéis com ossos de santos e passes para o
céu, vive hoje o dilema de ser ameaçada pela vulgaridade das relações
capitalistas numa fé de mercado. Dilema que procura resolver de uma maneira
bastante inteligente, ao manter a salvo a tradição que tem lhe garantido poder
e influência há dois mil anos, mas ao mesmo tempo estimular sua versão de
mercado, encarnada pelos carismáticos. Como uma espécie de vanguarda, que
contém o avanço das tropas “inimigas” lá na frente sem comprometer a
integridade do exército que se mantém mais atrás, padres pop star como Marcelo
Rossi e movimentos como a Canção Nova têm sido estratégicos para reduzir a
sangria de fiéis para as neopentecostais. Não fosse esse tipo de abordagem mais
agressiva e possivelmente já existiria uma porção ainda maior de evangélicos no
país.
Tudo indica que a parábola do taxista se tornará cada vez
mais frequente nas ruas do Brasil – em novas e ferozes versões. Afinal, não há
nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por
convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um
católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais
difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na
existência de Deus, qualquer produto religioso, seja ele material, como um
travesseiro que cura doenças, ou subjetivo, como o conforto da vida eterna, não
tem qualquer apelo. Seria como vender gelo para um esquimó.
Tenho muitos amigos ateus. E eles me contam que têm evitado
se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil. Por
enquanto, a reação é como a do taxista: “Deus me livre!”. Mas percebem que o
cerco se aperta e, a qualquer momento, temem que alguém possa empunhar um
punhado de dentes de alho diante deles ou iniciar um exorcismo ali mesmo, no
sinal fechado ou na padaria da esquina. Acuados, têm preferido declarar-se
“agnósticos”. Com sorte, parte dos crentes pode ficar em dúvida e pensar que é
alguma igreja nova.
Já conhecia a “Bola de Neve” (ou “Bola de Neve Church, para
os íntimos”, como diz o seu site), mas nunca tinha ouvido falar da “Novidade de
Vida”. Busquei o site da igreja na internet. Na página de abertura, me deparei
com uma preleção intitulada: “O perigo da tolerância”. O texto fala sobre as
famílias, afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que
não venha de Deus. Tolerar “coisas erradas” é o mesmo que “criar demônios de
estimação”. Entre as muitas frases exemplares, uma se destaca: “Hoje em dia, o
mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”. Deus me
livre!, um ateu talvez tenha vontade de dizer. Mas nem esse conforto lhe resta.
Ainda que o crescimento evangélico no Brasil venha sendo
investigado tanto pela academia como pelo jornalismo, é pouco para a
profundidade das mudanças que tem trazido à vida cotidiana do país. As
transformações no modo de ser brasileiro talvez sejam maiores do que possa
parecer à primeira vista. Talvez estejam alterando o “homem cordial” – não no
sentido estrito conferido por Sérgio Buarque de Holanda, mas no sentido
atribuído pelo senso comum.
Me arriscaria a dizer que a liberdade de credo – e,
portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo
solapada na prática do dia a dia. Não deixa de ser curioso que, no século XXI,
ser ateu volte a ter um conteúdo revolucionário. Mas, depois que Sarah Sheeva,
uma das filhas de Pepeu Gomes e Baby do Brasil, passou a pastorear mulheres virgens
– ou com vontade de voltar a ser – em busca de príncipes encantados, na “Igreja
Celular Internacional”, nada mais me surpreende.
Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a
acreditar nele.
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