Domingo passado foi o batizado da Duda, minha neta número
dois (cronologicamente falando). E eu fui - é claro - à igreja, muito embora
não me agrade a ideia de submeter uma criança a qualquer tipo de obrigação
religiosa. Fui exclusivamente por amor e consideração ao meu filho - que também
não tem religião -, à minha nora e à minha neta - que, obviamente, também não
tem.
O que presenciei na igreja foi algo inacreditável, que mais
se assemelhava a uma feira livre, nada tendo a ver com uma cerimônia religiosa,
a começar por um “mestre de cerimônias” - talvez um desses leigos que hoje
ajudam nas missas - que, munido de um microfone em volume máximo, ainda por
cima gritava os nomes dos 17 batizandos cujos pais, padrinhos e parentes
respondiam também aos berros, em uma espécie de chamada prévia. Parecia anúncio
de promoção de loja de quinquilharias na Rua da Alfândega.
Sentamos separados dos pais da Duda. A berraria imediatamente
me deixou atordoado e saí para fumar após uns dez minutos, sem que a tal
chamada tivesse terminado. Além disso, era gente que não acabava mais, e eu até
me senti um pouco responsável pelo fato de ter contribuído com quatro filhos e
respectivos maridos, esposas, filhos dos filhos, netos a caminho, mulher,
ex-mulher, marido de ex-mulher e eu mesmo: 15 pessoas, só de minha parte, sendo
que apenas três faltaram por estarem viajando, fora os parentes da minha nora,
padrinho e madrinha da Duda e respectivos parentes diretos. Uma legítima
multidão.
Fumei, voltei, e enfim o padre tinha começado a falar - tão
alto quanto o “mestre de cerimônias” -, explicando longamente que a celebração
não era budista, xintoísta, protestante ou espírita, mas sim católica. Depois
de ficar ciente dessa importante revelação, sem esperar por mais outras tão
espantosas quanto, eu resolvi ir a um supermercado por perto, que tinha visto
no caminho, para comprar umas flores para a neta e uma caixa de paçocas para o neto.
Peguei os “presentes” e, com calma e resignação, enfrentei a fila única
descomunal do caixa sem me prevalecer das minhas prerrogativas de idoso. Paguei
e voltei à igreja.
Nessa hora o padre estava naquela parte do
senta-levanta-ajoelha, mesmo com a balbúrdia comendo solta, sem que os
batizados propriamente ditos tivessem começado. Sem ter um pingo de paciência
para assistir, não uma missa em si, mas uma zorra e desrespeito totais, deixei
as pequenas sacolas do supermercado com minha filha e minha mulher, decidi
tomar um pouco de “água benta” e rumei em direção a um pé-limpo em frente que
eu já tinha previamente selecionado quando saí para fumar.
A essas alturas, uma da tarde - a cerimônia sem-cerimônia
começara ao meio-dia -, goela seca, a cervejinha caiu como um néctar dos deuses
do Olimpo e também me ajudou a acalmar. Bebi a o conteúdo da latinha de
Antarctica rápido, mas com todo o respeito que a primeira do dia merece.
Voltei à igreja pela terceira vez e, desta, um pouco mais
tranquilo. Mas, quis a alaúza instaurada com o firme propósito de tornar a
coisa insuportável, que ainda estivesse começando a chamada para que, de uma a
uma, as crianças recebessem o sacramento. E foi logo na primeira que eu vi que
a coisa toda estava irremediavelmente perdida, quando, no final de uma
interminável ladainha que o padre fazia com pais, padrinhos e agregados,
obrigados a repetir suas palavras que me entraram por uma orelha e saíram pela
outra, ele elevou a voz mais ainda e disse: “Repitam comigo de novo: ‘creio’!,
sem comer chicletes! Não pode comer chicletes aqui!”.
Quiuspariu!, aquilo foi a gota d’água para o meu já tão
judiado saquinho. E rumei, em definitivo, para o boteco, e de lá só voltei
quando, do outro lado da rua, vi rostos familiares saindo do átrio. Enfim, duas
horas depois de iniciada a azáfama, era hora de ir embora. Do bar e da igreja.
Fui e irei sempre a cerimônias religiosas desse tipo por
consideração, desde que seus protagonistas me sejam caros e estejam presentes
em carne e osso vivos, o que exclui velórios, enterros e missas de defuntos, sobre
quais me dou o direito de decidir, de acordo com meu humor na hora, mas me dou
o direito também, caso eu estiver presente a qualquer uma delas, de assistir ou
não aos ritos, de acordo com o que eu considere respeitoso a quem é seu motivo
e a mim.
Considero o que assisti domingo uma afronta a todos que lá
estiveram com educação suficiente para saber respeitar qualquer manifestação
religiosa, independentemente dos seus próprios credos ou “descredos”, aos
católicos de uma maneira geral e, principalmente, às crianças que estavam lá
para receber seu primeiro sacramento sem nem saber por quê. Única e
exclusivamente por isso tudo preferi o supermercado e o boteco à verdadeira desfeita
que um padreco e sua trupe cometeram, sobretudo com a minha neta.
Talvez a maioria das pessoas conteste meu direito de opinar
sobre suas religiões por eu ser ateu. Talvez todos os crentes extremados de todas
as crenças me considerem um pecador por isso. Tô nem aí, até porque, sem ser um
estudioso, já li a respeito de quase todas muito mais que a maioria dos seus
adeptos. Mas que nem todos se aflijam porque que minha pinimba hoje é com o
catolicismo, mais especificamente, com o processo de esculhambação paulatina de
um dos ritos mais bonitos de todas as religiões, que é a missa católica. Mais
precisamente, era.
Fiz primeira comunhão - ainda quando o Mar Morto estava
apenas doente - sendo obrigado a assistir missa todo domingo. Nas aulas semanais
de catecismo fui cobrado da assinatura do pároco da Igreja Nossa Senhora da
Paz, Frei Leovigildo, em uma cartelinha especialmente feita para isso, durante
um ano. Lembro até que o cara escrevia com uma caneta tinteiro com tinta
verde-cheguei e tinha uma caligrafia que era uma verdadeira obra de arte
rococó, que, aliás, condizia com sua personalidade vaidosa.
Leovigildo rezava as missas em latim, que acompanhávamos
pelo missal, dava os sermões em uma língua que vagamente se assemelhava ao
português inteligível por meninos e meninas com sete anos de vida, mas, apesar
dos pesares, aquela postura, o silêncio total que nos era exigido, as
intervenções oportunas de um órgão e de um coral e a fala mansa e firme do
padre - mesmo sem entendermos um décimo, tudo isso junto, criava um clima que
remetia a algo mais que apenas uma extrema paz, coisa que eu só fui entender
dez ou doze anos depois, quando resolvi empreender uma busca frenética por um
deus, qualquer que fosse, comprando e lendo toda e qualquer literatura sobre o
assunto, inclusive os ditos “livros sagrados” de quase todas as religiões.
Sim, a leitura me ajudou a compreender e respeitar muitas
coisas, mas foi a memória que eu tinha das missas que assisti durante 1959,
associada a uma certa maturidade intelectual dentro do que era possível a um
rapaz de 18 anos, que me fez perceber a - digamos - elevação espiritual
pretendida pelo catolicismo. Não importa se essas cerimônias foram engendradas
e desenvolvidas por hábeis marqueteiros da Idade Média com o auxílio
imprescindível dos arquitetos de então, que criavam ambientes que, sem dúvida,
enlevam até hoje.
Um dos momentos mais bonitos que vivi e uma das emoções mais
fortes que senti, foi dentro de uma igreja, em 1973, já ateu e então convicto. Um
dia antes do fato eu a visitei com o grupo ao qual eu pertencia, em turismo
pela Europa. É claro que eu, como estudante de arquitetura e admirador das
artes, me encantei com a visita à Catedral de Notre Dame de Paris, mas, ao sair
de lá, senti que ainda faltava alguma coisa para ver, sem saber exatamente o
que era. Como eu estava hospedado em um hotel a três quarteirões da igreja,
decidi que, no dia seguinte, acordaria bem cedo e iria, sozinho, fazer uma nova
visita.
E assim fiz. Arrisquei, mesmo sabendo que a Catedral passava
por pequenos reparos de restauro que determinavam seu fechamento em certos
horários. E dei sorte, muita sorte. Primeiro que na porta principal, embora não
estivesse aberta, havia uma meia folha apenas encostada, que não tive dúvidas
em me esgueirar para atravessá-la. Segundo porque o encarregado de tomar conta
da entrada era um francês muito simpático, talvez o único exemplar dessa raça em
Paris, que, ante minhas argumentações em um legítimo dialeto marselhês
adquirido em São João do Meriti, concedeu permissão para que eu entrasse.
Terceiro porque a igreja estava completamente vazia de fieis e a presença dos
poucos restauradores nem era percebida em meio à imensidão da nave. Quarto
porque quase imediatamente após sentar e dirigir meu olhar para cima, para a
beleza dos vitrais em uma manhã de sol, algumas notas soltas vindas de um órgão
enriqueceram mais ainda o ambiente já tão rico apenas e tão somente pela beleza
da luz através dos coloridos translúcidos. Quinto porque ao som do órgão,
juntaram-se vozes que igualmente, em notas soltas variando entre três oitavas,
completavam um maravilhoso e afinado caos sonoro. E sexto porque, alguns
minutos depois, fui o único estranho no ninho brindado com a harmonia do que
presumo ter sido um ensaio dos talvez mais gabaritados coral e órgão da França,
interpretando as missas de Bach, Mozart e outros autores que minha limitada
cultura musical não permitiu identificar.
Isso tudo combinado me levou involuntariamente a esconder as
noções básicas da razão em algum lugar do cérebro. Passei a não sentir mais os
efeitos do frio polar que fazia e os únicos arrepios que eu sentia eram o
resultado de uma espécie de êxtase que ultrapassava em muito qualquer tipo de
prazer vivido por mim até então. Nem mesmo o melhor sexo com a melhor mulher
tinha sido tão completo e complexo quanto o que eu sentia naquele momento.
Havia perdido a noção de tempo, tanto que, não sei o quanto
depois o tal gentil francês veio a mim e avisou da hora e que Notre Dame seria
fechada para que todos os que ali trabalhavam almoçassem, inclusive o próprio.
Agradeci e saí.
Só lamento não poder descrever o que senti em detalhes e,
mesmo logo depois da experiência, eu já não conseguiria fazê-lo, porque as
emoções puras são indescritíveis, por pessoais demais a ponto de não serem
entendidas até por quem as vive.
Com absoluta certeza, apesar da falta de uma explicação
convincente, afirmo não ter sentido nada que se assemelhasse a uma aproximação ou
presença de um deus, mas tenho a certeza que muitos sentiriam ambas as coisas,
se submetidos à mesma situação, mesmo que aquilo tudo não tivesse passado de
uma mera informalidade, totalmente descompromissada com o rigor de uma missa.
Quem sabe os deuses não me quisessem à época, já que eu era um feroz contestador
de suas existências? Quem sabe eu, hoje, mais complacente, se passasse pela
mesma experiência, fosse procurado por alguma divindade? Sabe-se lá?
Voltando ao batismo da neta, o que se verifica hoje na
igreja católica é a sua completa dissociação do caráter religioso, transformada
que foi em uma instituição dirigida e preocupada apenas com os aspectos sociais
quando, por princípios, teria que tratar de fundamentos espirituais, até não
exclusivamente, mas, pelo menos que fossem como seus alicerces.
Finalizando, acabei de ler, por alto, que o Papa Chico apresentou
ontem a sua segunda encíclica, na verdade a primeira exclusivamente sua, cheia de apelos demagógicos que pedem aos
clérigos que se afastem da doutrina e se preocupem mais com o povo.
Mais tarde comento, mas, a princípio, é justamente contra
esse tipo de coisa que eu me bato. Espiritualidade não combina com demagogia em
nenhuma religião.