“Genoíno, olhe no meu
olho, você está me vendo. Eu prendi você na mata e não toquei num fio de cabelo
seu. Não lhe demos uma facãozada, não lhe demos uma bolacha - coisa de que me
arrependo hoje.” Coronel Lício Augusto Maciel
O discurso do Coronel Lício Augusto Maciel na Câmara dos
Deputados, em sessão solene em homenagem aos combatentes mortos no Araguaia,
realizada no dia 26 de junho de 2005, deve ser lido e relido, na íntegra
(aqui), porque até mesmo só como narrativa ele vale a pena.
Reproduzo aqui a parte em que o coronel conta como foi a
prisão do valente Genoíno.
“(...)Demos uma meia parada e passamos a destruir o
equipamento abandonado por eles. Foi então que pressentimos a vinda de alguém
pela trilha. Nós estávamos no meio da mata e esse elemento vinha pela trilha.
Agachamo-nos e observamos um elemento forte, com chapéu de couro, mochila nas
costas e facão na cintura. Então, quando chegou bem próximo, dei a ordem: ‘Prendam
esse cara!’
Não sei, não posso me lembrar, se foi o Cid ou se foi o Cabo
Marra que pegou o Genoíno, pois esse elemento, que dizia chamar-se Geraldo,
posteriormente foi identificado como Genoíno - que naturalmente está me olhando
agora. E eu tiro os óculos justamente para ele me reconhecer, porque da minha
cara ninguém esquece, principalmente com aquela cara que eu estava na mata,
depois de vários dias passando fome e sede, sujo, cheio de barba... Mas é a
mesma cara... É o mesmo olhar de quando o encarei e disse:
‘Seu mentiroso! Confesse! Você não tem mais alternativa’.
Por que eu descobri que o Genoíno era guerrilheiro?
Ele se dizia Geraldo e se dizia morador da área (claro,
elemento na área, suspeito, eu mandei deter). Mesmo algemado e com tudo nas
costas, uma mochila pesada e grande, ele fugiu. O Cabo Marra deu três tiros de
advertência, e ele parou. Mas não parou por causa da advertência, parou porque
se emaranhou no cipoal e o pessoal conseguiu pegá-lo.
Eu perguntei: ‘Por que você está fugindo? Nós apenas estamos
querendo conversar com você. Para você não fugir, vamos ter de algemá-lo’.
‘Eu sou morador’ - disse ele.
Deixei o pessoal especializado em inquirição conversar com o
Genoíno - até então Geraldo. O Cid conversou bastante tempo com o Genoíno e,
afinal, veio a mim e disse: ‘Comandante, não tem nada, não’.
‘Está bem’ - respondi. Como eu já estava há muito tempo no
mato e já tinha decidido levar esse Geraldo para Xambioá, peguei a mochila
dele.
Quero também ressaltar que havia um elemento na minha equipe
- já falecido - especialista em falar com o pessoal da área; um elemento
excepcionalmente bondoso, ao qual presto minhas homenagens. O João Pedro,
apelidado por nós de Jota Peter, ou Javali Solitário - onde estiver estará me
escutando. João Pedro era quem falava com o matuto, com o pessoal da área. Eu,
na minha linguagem urbana, não era entendido nem entendia o que eles falavam.
Pois bem, o Javali veio a mim e disse: ‘Ele não tem nada. É morador da área’.
Como homem de selva que era, peguei a mochila do Geraldo e
comecei a abri-la. Tirei pulôver, rede e um bocado de ‘bagulho’ da mochila do
Geraldo, até encontrar um tubo de remédio no fundo da mochila. Ao pegar aquele
tubo e olhar para o Genoíno, vi que ele estava lívido, pálido. Lembro-me que
ainda lhe disse: ‘Companheiro, fique tranquilo porque nós não vamos fazer nada
com você; você é morador da área’. E abri o tubo...
Lá encontrei material típico de sobrevivência - linha de
pesca fina, anzóis. Como eu havia feito um curso e só sabia teoricamente sobre
o assunto, interessei-me por aquele exemplo prático, em um local de difícil
acesso na selva amazônica. À medida que eu ia puxando aquelas linhas, o Genoíno
- aliás, o Geraldo - ia ficando mais desesperado. E quando eu esvaziei o tubo,
olhei para ele... estava branco como cera.
Quando eu olhei para ele [Genoíno]e disse: ‘Você não tem
mais alternativa porque aqui está a mensagem’, ele disse: ‘Eu falo’.
Foi quando, lá no fundo do tubo, vi um papel pautado, dessas
cadernetas em que todo dono de bodega na área anotava as suas vendas. Cortei
uma talisca do meu lado, puxei o papel e lá estava a mensagem do Comandante do
Grupamento B, da Gameleira, o Osvaldão, para o Comandante do Grupamento C,
Antônio da Dina. Estava lá a mensagem que o Genoíno transportava para o Antônio
da Dina. Era uma mensagem tão curta que ele, como bom escoteiro que era,
poderia ter decorado, pois até hoje, mais de 30 anos passados, eu me lembro do
que ela dizia. Era uma dúzia de palavras em linguajar militar, de próprio punho
do Osvaldão, o Comandante do Grupamento B da Gameleira, o grupamento mais
perigoso da guerrilha, como constatamos no desenrolar das lutas.
Aliás, esse foi o grupo que matou o primeiro militar na
área. Antes de qualquer pessoa morrer, o grupo do Osvaldão matou o Cabo Rosa,
Odílio Cruz Rosa. Depois do Cabo Rosa eles mataram mais 2 sargentos e fizeram
muito mal aos militares, que nada sabiam até então. Só quem sabia era o pessoal
de informações.
Bem, prosseguindo. O Genoino foi mandado para Xambioá. A
essa altura ele deixou de ser suspeito e disse tudo sobre a área. Quando eu
olhei para ele e disse: ‘Você não tem mais alternativa porque aqui está a
mensagem’, ele disse: ‘Eu falo’.
Genoíno, olhe no meu olho, você está me vendo. Eu prendi
você na mata e não toquei num fio de cabelo seu. Não lhe demos uma facãozada,
não lhe demos uma bolacha - coisa de que me arrependo hoje.
Um elemento da minha equipe, fumador inveterado, abriu um
pacote de cigarros, aproveitou aquele papel branco do verso, pegou um toco de
lápis, não sei de onde, e o João Pedro começou a anotar o que o Genoino falava.
Fui até um córrego próximo beber um pouco d’água. Voltei e o papel estava
cheio, com toda a composição da Guerrilha - nomes, locais, Grupamento C, ao
sul; Grupamento B, da Gameleira, perto de Santa Isabel; e Grupamento A, perto
de Marabá. Eram esse os 3 grupos efetivos, em que se presumiam 30 homens por grupamento,
além de um comitê militar, comandado por Maurício Grabois.
Peguei aquele papel e ainda comentei com ele: ‘Pô, meu
amigo, tu és um cara importante desse negócio aí, hein?’ E mandei o Genoíno
para Xambioá, onde foi recolhido ao xadrez e, posteriormente, enviado a
Brasília. Três ou quatro dias depois, não me lembro, veio a confirmação da
identificação: o guerrilheiro Geraldo era o José Genoino Neto.
Triste notícia veio depois. O grupo do Genoíno prendeu um filho
do Antônio Pereira, aquele senhor humilde, que morava nos confins da picada de
Pará da Lama, a quilômetros de São Geraldo. O filho dele era um garoto de 17
anos, que eu não queria levar como guia, porque ao olhar para ele me lembrei do
meu filho, que tinha a mesma idade. Eu dissera ao João: ‘Não quero levar o seu
filho’. Eu sabia das implicações, ou já desconfiava. Mas o pobre coitado do
rapaz nos seguiu durante uma manhã, das 5h até o meio-dia, quando encontramos
os três nos aguardando para almoçar. Pois bem. Depois que nos retiramos, os
companheiros do José Genoíno pegaram o rapaz e o esquartejaram.
Genoino, aquele rapaz foi esquartejado!
Toda a Xambioá sabe disso, todos os moradores de Xambioá
sabem da vida do pobre coitado do Antônio Pereira, pai do João Pereira, e vocês
nunca tiveram a coragem de pedir pelo menos uma desculpa por terem esquartejado
o rapaz! Cortaram primeiro uma orelha, na frente da família, no pátio da casa
do Antônio Pereira; cortaram a segunda orelha; o rapaz urrava de dor; a mãe
desmaiou. Eles continuaram, cortaram os dedos, as mãos e, no final, deram a
facada que matou João Pereira. Pois bem, eles fizeram isso apenas porque o
rapaz nos acompanhou durante 6 horas. Para servir de exemplo aos outros
moradores, de forma que não tivessem contato com o pessoal do Exército, das
Forças Armadas.
Foi o crime mais hediondo de que já soube. Nem na Guerra da
Coréia ou na do Vietnã fizeram isso. Algo parecido só encontrei quando
trucidaram o Tenente PM Alberto Mendes Júnior. Esse Tenente PM se oferecera
voluntariamente para substituir dois subordinados que estavam feridos,
capturados pela guerrilha do Lamarca. Lamarca pegou o rapaz, castrou-o,
obrigou-o a engolir os órgãos genitais e trucidou-o.
Pois o crime contra o João Pereira foi muito mais grave,
muito mais horrendo. E eles sabem disso. Peçam desculpas ao Antônio Pereira, se
ele estiver vivo! Tenham a coragem de reconhecer, pois toda a Xambioá sabe
disso! (...)”
A "Começão da Verdade", do "governo" não é pra isso não? ... ih!, vou pirar!
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