Um bom artigo achado em uma bosta de site.
Charlie Hebdo: a culpa da Arábia Saudita
José Antonio Lima na Carta Capital
Poucas ações são mais repugnantes do que homens armados
invadirem a redação de um jornal e assassinarem pessoas cujo ofício era exercer
o inalienável direito à liberdade de expressão. A covardia ocorrida na
quarta-feira 7 em Paris, na sede do satírico Charlie Hebdo, terá uma
repercussão profunda, mas é improvável que o debate público e as ações
governamentais resultantes do massacre atinjam o cerne da questão: a origem da
ideologia doentia que dá suporte aos terroristas da capital francesa.
Os assassinos de Paris tinham uma clara missão. Desejavam
executar os responsáveis pelo veículo que tinha, entre outros alvos também
legítimos, o islã. Certamente levaram em conta a importância simbólica de um
órgão de imprensa para uma sociedade democrática. Ao atacá-lo, desejavam
aterrorizar as sociedades vistas por eles como decadentes, por não
compartilharem sua sórdida visão de mundo. Buscavam, também, criar um clima de
tensão capaz de ampliar a capacidade de recrutamento do jihadismo. O caos e a
morte são partes indissociáveis do ambiente no qual se sentem confortáveis.
Irremediavelmente, a culpa pela carnificina é dos homens que
planejaram e realizaram a barbárie. Cabe notar, entretanto, que a ideologia por
eles defendida viceja em situações específicas. Ao contrário do que afirmam
alguns islamofóbicos, rapidamente vindos à superfície diante da tragédia, o
problema por trás deste tipo de terror não é o islã. Não há dúvidas, porém, de
que se trate de um problema do islã, ainda que de uma fração minoritária, mas
incrivelmente poderosa e influente.
A gênese das ideias dos terroristas de Paris, assim como a
de grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, está na Arábia Saudita. Desde
1932, quando foi fundada, até hoje, a Arábia Saudita existe como Estado graças
a uma aliança formada por uma família, a Saud, e um establishment religioso
inspirado no teólogo Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab.
Al-Wahhab viveu entre 1703 e 1792 e era fortemente
influenciado pelo teólogo do século XIII Taqi al-Din ibnTaymiyya, que pregou a
retomada do passado glorioso da civilização muçulmana por meio de um retorno às
origens do islã, cuja base seria a interpretação literal do Corão e um estilo
de vida igual ao de Maomé – preceitos da doutrina hoje conhecida como
salafismo. Como discípulo de Ibn Taymiyya, Al-Wahhab desenvolveu o wahabismo, a
versão saudita do salafismo.
Nos anos 1940 e 1950, o florescimento da indústria
petrolífera, e a parceria com os Estados Unidos e o mundo ocidental,
potencializariam essa doutrina. Dona de reservas gigantescas de petróleo, a
Arábia Saudita passou a exercer um papel de enorme relevância no mundo e
decidiu exportar sua ideologia. Esse processo foi facilitado a partir dos anos
1970, quando as receitas do petróleo explodiram. A exportação era (e ainda é)
feita por meios como a inclusão de clérigos wahabistas no corpo diplomático
saudita e pela fundação de instituições e escolas islâmicas (como as que deram
origem ao Talibã no Afeganistão e no Paquistão nos anos 1980).
Ao se alastrar pelo mundo, a ideologia saudita influenciou
inúmeras sociedades, mas também foi influenciada. A mais importante das
transformações ocorreu no Egito, sob as mãos de Sayyid Qutb. Foi Qutb o
responsável por lançar as justificativas teóricas para classificar os líderes
políticos muçulmanos que atuam descumprindo a lei islâmica (sharia) como
infiéis (kafir) e declará-los excomungados (takfir), passíveis de serem alvo da
jihad e, assim, executados.
Este “avanço” ideológico criou um monumental desafio para a
Arábia Saudita: hoje, a principal contestação ao regime da família Saud vem de
wahabistas que não consideram o governo suficientemente islâmico.
Para contê-los, a Arábia Saudita usa dois expedientes. Por
um lado, usa seus petrodólares para proporcionar inúmeros benefícios sociais a
suas populações. Para quem ainda assim insiste em ser dissidente, seja
jihadista ou não, há um draconiano sistema de controle social e político, que
subjuga as mulheres, inclui uma polícia moral e punições como crucificações e
decapitações. Responsável por cuidar do lugar onde o islã nasceu, as cidades de
Meca e Medina, a Arábia Saudita pune os "ataques à religião" com uma
severidade atroz, legitimando ao resto do mundo muçulmano a punição da
blasfêmia. A mais recente vítima é o blogueiro liberal Raif Baddawi. Nesta
quinta-feira 8, a Anistia Internacional confirmou que Baddawi foi condenado a
mil chibatadas por "insultar o islã" – 50 por semana, durante 20
semanas.
Se a fúria jihadista é controlada em casa, no exterior ela é
libertada. Comumente, a exportação do jihadismo foge ao controle, sendo a
Al-Qaeda um exemplo clássico e o Estado Islâmico, o mais recente.
Se é claro que a Arábia Saudita está no cerne do que ocorreu
em Paris na quarta-feira, é óbvio, também, que o país não se encontra sozinho
nesta condição. Seus gêmeos ideológicos Catar, Emirados Árabes Unidos e Kuwait
agem da mesma maneira, mas com menos dinheiro e influência. Além disso, a
aliança da família Saud com os Estados Unidos e os países europeus, entre eles
a França, continua sendo fundamental para ambos os lados. Juntos, EUA e UE
apoiam de maneira firme as ditaduras do Oriente Médio que retiram de seus
cidadãos toda a possibilidade de exercer oposição, a não ser a religiosa.
Sem parlamentos, partidos, imprensa, sindicatos e movimentos
estudantis independentes, sobram as mesquitas, infestadas por clérigos que
pregam a violência. Em um ambiente de quase total ausência de espaço
democrático, não há chance de debate livre sobre a religião, e o radicalismo
prospera. Diante da generalizada percepção de que os muçulmanos estão sitiados
pelo Ocidente desde a colonização europeia, pessoas e instituições ocidentais
se tornam alvo prioritário.
Uma lógica semelhante se reproduz na Europa. As comunidades
muçulmanas têm enorme dificuldade em se integrar e geram uma série de
indivíduos ressentidos – com a pobreza, a falta de perspectivas e o
preconceito. Alienados e marginalizados, os jovens muçulmanos, cujos índices de
desemprego são ainda maiores que os dos jovens europeus, por sua vez enormes,
ficam à mercê da radicalização propagada por clérigos extremistas.
É nesses caldos culturais e sociais, seja na Europa ou no
Oriente Médio, que o jihadismo floresce.
Na noite de quarta, milhares de franceses ocuparam a
simbólica Praça da República, em solidariedade às vítimas do ataque terrorista
e em defesa das liberdades. Foi um movimento espontâneo e emocionante. Cabe
questionar, no entanto, se os franceses (e ingleses, alemães, norte-americanos
etc) vão tratar o atentado como uma ofensiva civilizacional do “islã” contra o
“ocidente”, fortalecendo extremistas de todos os lados, como desejavam os
terroristas, ou vão debater as raízes da arriscada aposta feita por seus governos
– conciliar a aliança a uma teocracia sociopata com a obrigação de proteger
seus cidadãos, defendendo valores democráticos aqui, mas apoiando seus
violadores lá.
Se esse debate ocorrer – após o 11 de setembro de 2001, o 7
de julho de 2005 em Londres, o 11 de março de 2004 em Madri e, agora, o 7 de
janeiro em Paris – provavelmente ficará claro que não é possível ter o melhor
dos dois mundos, trazendo o petróleo e deixando a pervertida interpretação do
islã promovida pelos sauditas no Oriente Médio.
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