Roberto Campos 1999
Quando for escrita a história econômica do Brasil nos
últimos 50 anos, várias coisas estranhas acontecerão. A política de autonomia
tecnológica em informática, dos anos 70 e 80, aparecerá como uma solene
estupidez, pois significou uma taxação da inteligência e uma subvenção à
burrice dos nacionalistas e à safadeza de empresários cartoriais. Campanhas
econômico-ideológicas como a do “o petróleo é nosso” deixarão de ser descritas
como uma marcha de patriotas esclarecidos, para ser vistas como uma procissão
de fetichistas anti-higiênicos, capazes de transformar um líquido fedorento num
ungüento sagrado. Foi uma “passeata da anti-razão” que criou sérias deformações
culturais, inclusive a propensão funesta às “reservas de mercado” .
A criação do monopólio estatal de 1953 foi um pecado contra
a lógica econômica. Precisamente nesse momento, o ministro da Fazenda, Oswaldo
Aranha, mendigava um empréstimo de US$ 300 milhões ao Eximbank, para cobertura
de importações correntes (inclusive de petróleo). A ironia da situação era
flagrante: de um lado, o país mendigava capitais de empréstimos que agravariam
sua insolvência, de outro, pela proclamação do monopólio estatal, rejeitava
capitais voluntários de risco. Ao invés de sócios complacentes (cuja fortuna
dependeria do êxito do país), preferíamos credores implacáveis (que exigiriam
pagamento, independentemente das crises internas). Esse absurdo ilogismo levou
Eugene Black, presidente do Banco Mundial, a interromper financiamentos ao
Brasil durante cerca de dez anos (com exceção do projeto hidrelétrico de
Furnas, financiado em 1958). Houve outros subprodutos desfavoráveis.
Criou-se uma cultura de “reserva de mercado”, hostil ao
capitalismo competitivo. Surgiu uma poderosa burguesia estatal que, protegida
da crítica e imune à concorrência, acumulou privilégios abusivos em termos de
salários e aposentadorias.
Criou-se uma falsa identificação entre interesse da empresa
e interesse nacional, de sorte que a crítica de gestão e a busca de
alternativas passaram a ser vistas como traição ou impatriotismo.
Vistos em retrospecto, os monopólios estatais de petróleo,
que se expandiram no Terceiro Mundo nas décadas de 60 e 70, longe de
representarem um ativo estratégico, tornaram-se um cacoete de países
subdesenvolvidos na América Latina, África e Médio Oriente. Nenhum país rico ou
estrategicamente importante, nem do Grupo dos 7 nem da OCDE, mantém hoje
monopólios estatais, o que significa que os monopólios não são necessários nem
para a riqueza nem para a segurança estratégica.
Essas considerações me vêm à mente ao perlustrar os últimos
relatórios da Petrossauro. Ao contrário de suas congêneres terceiro-mundistas,
que são vacas-leiteiras dos respectivos Tesouros, a Petrossauro sempre foi
mesquinha no tratamento do acionista majoritário. Tradicionalmente, a
remuneração média anual do Tesouro, sob a forma de dividendos líquidos, não
chegou a 1% sobre o capital aplicado. Após a extinção de jure do monopólio, em
1995 (ele continua de facto), e em virtude da crítica de gestão e da pressão do
Tesouro falido, os dividendos melhoraram um pouco, ma non troppo.
Muito mais generoso é o tratamento dado pela Petrossauro à
Fundação Petros, que representa patrimônio privado dos funcionários.
A empresa é dessarte muito mais um instituto de previdência,
que trabalha para os funcionários, do que uma indústria lucrativa, que trabalha
para os acionistas. Aliás, é duvidoso que a Petrossauro seja uma empresa
lucrativa. Lucro é o resultado gerado em condições competitivas. No caso de
monopólios, é melhor falar em resultados.Quanto à Petrossauro, se fosse
obrigada a pagar os variados tributos que pagam as multinacionais aos países
hospedeiros-bônus de assinatura, royalties polpudos, participação na produção,
Imposto de Renda e importação-teria que registrar prejuízos constantes, pois é
alto seu custo de produção e baixa sua eficiência, quer medida em barris/dia
por empregado, quer em venda anual por empregado.*
Examinados os balanços de 1995 a 1998, verifica-se que o
somatório dos dividendos ao Tesouro (pagos ou propostos) alcançam R$ 1,606
bilhão enquanto que as doações à Petros atingiram 2,054 bilhões.
Considerando que o Tesouro representa 160 milhões de
habitantes e vários milhões de contribuintes, enquanto que a burguesia do
Estado da Petrossauro é inferior a 40 mil pessoas, verifica-se que é o
contribuinte que está a serviço da estatal e não vice- versa.
Nota-se hoje no Governo uma perigosa tendência de
postergação das privatizações seja na área de petróleo, seja na área
financeira, seja na eletricidade. É um erro grave, que põe em dúvida nosso
sentido de urgência na solução da crise e nossa percepção dos remédios
necessários. A privatização não é uma opção acidental nem coisa postergável,
como pensam políticos irrealistas e burocratas corporativistas. É uma imposição
do realismo financeiro. Há duas tarefas de saneamento imprescindíveis. A
primeira consiste em deter-se o “fluxo” do endividamento (o objeto mínimo seria
estabilizar-se a relação endividamento/PIB). Essa é a tarefa a ser cumprida
pelo ajuste “fiscal”.
A segunda consiste em reduzir-se o estoque da dívida. Esse o
objetivo da reforma “patrimonial”, ou seja, a “privatização”.
Não se deve subestimar a contribuição potencial da reforma
patrimonial para a solução de nosso impasse financeiro.
Tomemos um exemplo simplificado.
Apesar da crise das Bolsas, a venda do complexo
Petrossauro-BR Distribuidora poderia gerar uma receita estimada em R$ 20
bilhões.
Considerando-se que a rolagem da dívida está custando ao
Tesouro 40% ao ano, uma redução do estoque em R$ 20 bilhões, representaria uma
economia a curto prazo de R$ 8 bilhões. Isso equivale a aproximadamente 20 anos
dos dividendos pagos ao Tesouro pela Petrossauro na média do período 1995-1998
(a média anual foi de R$ 401,7 milhões).
Se aplicarmos o mesmo raciocínio à privatização de bancos
estatais e empresas de eletricidade, verificaremos que a solvência brasileira
dificilmente será restaurada pela simples reforma fiscal. Terá que ser
complementada pela reforma patrimonial.
É perigosa complacência a atitude governamental de que a
reforma fiscal é urgente e a reforma patrimonial postergável. É dessas
complacências e meias medidas que se compõe nossa lamentável, repetitiva e
humilhante crise existencial.
* Já falei isso aqui várias vezes. A produtividade/funcionário da Petrobras é mais que ridícula.
(argento) ... não sei por quê, lembrei da "onda dos royalties" ... a "Falência" (oportuna?) da Petrossauro deixou todo mundo com o pires na mão ... mas hein?
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