Por que os milionários brasileiros não doam suas fortunas a
universidades?
Fernando Schüler, na Época
Nos Estados Unidos, ricos ajudam museus e instituições de
ensino superior. No Brasil, a burocracia atrapalha quem quer fazer o bem.
Nota do editor e único funcionário dessa espelunca: Duvido um muito dessa última afirmativa e desconfio
que esses “mecenas” do showbiz também levam algum das bilheterias em algum tipo de
“operação casada” - vagabundo faz a renúncia fiscal e ainda recebe troco.
Stephen Schwarzman costumava fazer suas refeições no
Commons, quando estudante em Yale, em meados dos anos 1960. Sujeito tímido,
vindo de escola pública, sentia-se bem naquele edifício de estilo neoclássico,
situado no coração da universidade. Formado em 1969, Schwarzman percorreu passo
a passo o sonho americano. Nos anos 1980, criou o grupo Blackstone, hoje um dos
maiores fundos de investimento dos Estados Unidos. Consta como o 122º sujeito
mais rico do planeta, na lista da Forbes. No último dia 11 de maio, anunciou
uma doação de US$ 150 milhões para a conversão do velho Commons em um moderno
centro de artes.
O centro levará o nome de Schwarzman. Há quem veja nisso um
simples desejo de “imortalidade através do dinheiro”, como li em uma crítica.
Pouco importa. Talvez alguém tenha pensado o mesmo quando Lenand Stanford criou
a universidade que levaria seu nome, na década de 1880, na Califórnia. Ou
quando resolveram dar o nome de Solomon Guggenheim, logo após sua morte, ao
museu projetado por Frank Lloyd Wright, no coração de Manhattan. Quem sabe
teria sido melhor, para os Estados Unidos, imitar o exemplo brasileiro. Por
aqui, pouca gente tenta perpetuar o próprio nome, doando para universidades e
museus. Talvez por isso lê-se, por estes dias, o anúncio de fechamento da Casa
Daros, primoroso espaço de artes, no Rio de Janeiro, por falta de recursos.
A tradição da filantropia americana vem de longe. É possível
pensar que Andrew Carnegie seja seu maior ícone e, de certo modo, definidor
conceitual. Imigrante pobre, Carnegie fez fortuna na siderurgia americana, na
segunda metade do século XIX. Em 1901, aos 66 anos, vendeu suas indústrias ao
banqueiro J.P. Morgan e tornou-se o maior filantropo americano. Uma de suas
tantas proezas, não certamente a maior, foi construir mais de 3 mil
bibliotecas, nos Estados Unidos. Em 1889, escreveu o artigo “The Gospel of
Weath”, defendendo que os ricos deveriam viver com comedimento e tirar da
cabeça a ideia de legar sua fortuna aos filhos. Melhor seria doar o dinheiro
para alguma causa, ou várias delas, a sua escolha, ainda em vida. O Estado
poderia dar um empurrãozinho, aumentando o imposto sobre a herança, mas deveria
evitar a tributação das grandes fortunas. O melhor resultado, para todos, seria
obtido se os próprios ricos distribuíssem sua riqueza, com cuidado e
responsabilidade. Recentemente, foi o argumento usado por Bill Gates, o maior
filantropo de nossa era, em oposição a Thomas Piketty e sua obsessão em
tributar os mais ricos.
Gates não fala da boca para fora, nem é uma voz isolada. Em
2009, ele lançou, junto com Warren Buffett, o mais impressionante movimento de
incentivo à filantropia já visto: The Giving Pledge. A campanha tem, até o
momento, 128 signatários. Para participar, basta ser um bilionário e assinar
uma carta prometendo doar, em vida, mais da metade de sua fortuna a projetos
humanitários. Para boa parte dessas pessoas, doar 50% é pouco. Larry Elisson,
criador da Oracle, comprometeu-se em doar 95% de sua fortuna, hoje avaliada em
US$ 56 bilhões. Buffett foi além: vai doar 99%. Como bem observou o filósofo
alemão Peter Sloterdijk, parece que, ao contrário do que acreditávamos no século
XX, não são os pobres, mas os ricos que mudarão o mundo. Sloterdijt, por óbvio,
não conhece bem o Brasil.
Nos Estados Unidos, o valor das doações individuais à
filantropia chega a US$ 330 bilhões por ano. No Brasil, os números são
imprecisos, mas estima-se que o montante não passa de US$ 6 bilhões por ano.
Apenas 3% do financiamento a nossas ONGs vem de doações individuais, contra
mais de 70%, no caso americano. Há, segundo a tradicional lista da revista
Forbes, 54 bilionários no Brasil. Nenhum aderiu, até o momento, ao movimento da
Giving Pledge. Consta que Jorge Paulo Lemann, o número 1 da lista, foi
convidado. Não duvido que dia desses anuncie sua adesão. Seria um exemplo para
o país.
Explicações não faltam para essa disparidade. Há quem goste
de debitar o fenômeno na conta de nossa “formação cultural”. Por essa tese,
estaríamos atados a nossas raízes ibéricas, sempre esperando pelos favores do
Estado, indispostos a buscar formas de cooperação entre os cidadãos para
construir escolas, museus e bibliotecas ou simplesmente para consertar os
brinquedos e plantar flores na praça do bairro.
É possível que haja alguma verdade nisso. O rei Dom João
III, lá por volta de 1530, dividiu o país em capitanias hereditárias e as
dividiu entre fidalgos e amigos da corte portuguesa. Fazer o quê? Enquanto
isso, os peregrinos do Mayflower desembarcaram nas costas da Nova Inglaterra,
movidos pela fé e pelo amor ao trabalho, para construir um novo país. Uma bela
história, sem dúvida. Muito parecida com a de meus antepassados alemães, que
desembarcaram em 1824 nas margens do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul. Há
muitas histórias, há muitos tipos de formação cultural, no Brasil, assim como
nos Estados Unidos. Não é difícil escolher uma delas para justificar qualquer
coisa.
De minha parte, desconfio da tese do caráter cultural. Ela é
abstrata demais, difícil de mensurar e, pior, tende a levar à acomodação.
Prefiro concentrar o foco na variável sobre a qual – ao menos em boa medida –
temos controle. E essa variável é institucional. Minha tese é: o modelo
institucional e de incentivos que adotamos simplesmente não favorece o
desenvolvimento da filantropia. Ele incentiva que as pessoas esperem que o
Estado resolva seus problemas. E é o que elas fazem, em geral.
Vamos a um exemplo: nossos sistemas de incentivo fiscal a
doações. Nos Estados Unidos, se alguém quiser doar algum recurso para o MoMA (o
Museu de Arte Moderna, em Nova York), poderá abater até 30% de seu rendimento
tributável. Para algumas instituições, esse percentual sobe a 50%. No Brasil,
seu abatimento é limitado a 6% do Imposto de Renda, se o contribuinte fizer a
declaração completa.
O pior, no entanto, acontece do outro lado do balcão. Para
receber a doação, o museu brasileiro deverá ter um projeto previamente aprovado
pelo Ministério da Cultura, em Brasília. Serão meses em uma via crucis,
listando minuciosamente o gasto futuro com o projeto, e depois mais alguns
meses para a prestação de contas detalhada do que foi gasto com sua execução.
Fico imaginando o que o MoMA faria se, para receber doações, tivesse de enviar
previamente um projeto para ser analisado em Washington, linha a linha, por um
grupo de funcionários públicos. Os Estados Unidos nem sequer têm um Ministério
da Cultura. As doações e os incentivos são diretos, sem burocracia. Por isso,
funciona.
Vamos a outro exemplo: os americanos adotam como principal
estratégia de financiamento de suas instituições – sejam museus, universidades
ou orquestras sinfônicas – os chamados “fundos de endowment”. A ideia é bem
simples: uma poupança de longuíssimo prazo, destinada a crescer, ano a ano, da
qual a instituição retira parte dos rendimentos para seu custeio. Simplesmente
nenhuma grande instituição universitária ou cultural americana vive sem seu
endowment. Há 75 universidades com fundos de mais de US$ 1 bilhão. O maior de
todos, de Harvard, tem US$ 36 bilhões em caixa.
Pois bem, vamos imaginar que um milionário acordasse, dia
desses, decidido a doar uma boa quantia para algum endowment no Brasil. Ele
gosta de artes visuais e quer doar a um museu. Em primeiro lugar, ele não teria
nenhum incentivo fiscal para fazer isso. O Ministério da Cultura simplesmente
proíbe que um museu brasileiro apresente um projeto para receber doações para
endowments. Em segundo lugar, não haveria nenhum endowment para ser apoiado.
Nos Estados Unidos, ele encontraria milhares, e bastaria escolher algum, na
internet. Em Pindorama, nenhum. As leis não favorecem, os incentivos inexistem,
as instituições não estão organizadas para receber as doações. E a culpa segue
por conta de nossa “formação cultural”.
Outra razão diz respeito ao modelo de gestão de nossas
instituições. O Brasil teima, em pleno século XXI, a manter uma malha obsoleta
de universidades estatais. Elas consomem perto de 30% dos recursos do
Ministério da Educação, mas nenhuma se encontra entre as 200 melhores do mundo,
no último levantamento da revista Times Higher Education. Enquanto isso, os
Estados Unidos dispõem de 48 das 100 melhores universidades globais. Princeton,
Yale, Columbia, MIT seguem, em regra, o mesmo padrão: instituições privadas,
sem fins lucrativos, com largos endowments, cobrando mensalidades e oferecendo
um amplo sistema de bolsas por mérito (em âmbito global), e ancoradas em uma
rede de alumni e parcerias públicas e privadas. Não é diferente do que ocorre
com museus e instituições culturais.
O ponto é que o Brasil pode mudar. Há exemplos de líderes
empresariais que fazem sua parte. Há o caso exemplar do banqueiro Walter
Moreira Salles, fundador do Instituto Unibanco, voltado à educação, e do
Instituto Moreira Salles, voltado à cultura. Há a Fundação Maria Cecília Souto
Vidigal, há o Museu Iberê Camargo, criado por Jorge Gerdau, e há a Fundação
Roberto Marinho, à frente do maior projeto cultural do Brasil, nos dias de
hoje, que é o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. Há uma imensa generosidade e
espírito público, no país, ainda bloqueados pelo anacronismo dos modelos de
gestão pública que adotamos. Instituições, mais do que a história. Incentivos,
mais do que uma suposta genética cultural. Essa deve ser nossa aposta.