segunda-feira, 6 de abril de 2015

Laurentino Gomes, enfim, um historiador moderno decente

Comecei a ler 1808, do historiador Laurentino Gomes, e, por coincidência, li a introdução, coisa que normalmente não faço e não me perguntem por quê. Aliás, nem tanta coincidência assim, já que, escolado em ler coisas desse bando de supostos historiadores que anda por aí esculhambando nossos personagens importantes, eu estava mesmo é procurando uma pista indicando que Laurentino fizesse parte do conluio criado para desconstruir a nossa História em detrimento das verdades que só os vermelhinhos contam para os trouxas acreditarem.

Mas foi uma grata surpresa constatar, pela introdução, que o autor fica exatamente do lado oposto dessa gente sem caráter. A se registrar também, na introdução, que escaneei e reproduzo, em parte, abaixo, o descaso total do poder público com administração dos nossos museus e prédios históricos.

Introdução 1808

Em 1784, cinco anos antes da Revolução Francesa, o menino Bernadino da Motta Botelho pastoreava o gado em Monte Santo, uma das regiões mais áridas do sertão da Bahia, quando uma pedra de superfície lisa e escura, diferente de todas as demais, chamou sua atenção no meio da pastagem. Era uma descoberta que ficaria famosa. Em 1810, um grupo de cientistas da Sociedade Real de Londres atestaria que se tratava de um meteorito, uma rocha espacial que se havia chocado com a superfície da Terra depois de viajar milhões de quilômetros pela escuridão do universo. Com dois metros de diâmetro e mais de cinco toneladas de peso, o Meteorito de Bendegó é o maior já encontrado na América do Sul. Está hoje exposto no saguão do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Situado na Quinta da Boa Vista, a algumas centenas de metros do Estádio do Maracanã, com vista para o morro da Mangueira, este é um dos museus mais estranhos do Brasil. Seu acervo reúne, além do meteorito, aves e animais empalhados e vestimentas de tribos indígenas abrigadas em caixas de vidro que lembram vitrinas de lojas das cidades do interior. As peças estão distribuídas ao acaso, sem critério de organização ou identificação. O Museu Nacional é ainda mais esquisito pelo que esconde do que pelo que exibe. O prédio que o abriga, o Palácio de São Cristóvão, foi o cenário de um dos eventos mais extraordinários da história brasileira.

Ali viveu e reinou o único soberano europeu a colocar os pés em terras americanas em mais de quatro séculos. Ali, D. João VI, rei do Brasil e de Portugal, recebeu seus súditos, ministros, diplomatas e visitantes estrangeiros durante mais de uma década. Ali, aconteceu a transformação do Brasil colônia num país independente. Apesar de sua importância histórica, quase nada no Palácio São Cristóvão lembra a corte de Portugal no Rio de Janeiro. A construção retangular de três andares, que D. João ganhou de presente de um grande traficante de escravos ao chegar ao Brasil, em 1808, é hoje um prédio descuidado e sem memória. Nenhuma placa indica onde eram os dormitórios, a cozinha, as cavalariças e as demais dependências usadas pela família real. É como se nesse local a História tivesse sido apagada de propósito.

A mesma sensação de descaso se repete no centro do Rio de Janeiro, onde outro prédio deveria guardar lembranças importantes desse período. Localizado na Praça 15 de Novembro, em frente à estação das barcas que fazem a travessia da Baía da Guanabara em direção a Niterói, o antigo Paço Imperial é um casarão de dois andares do século XVII. Foi a sede oficial do governo de D. João no Brasil, entre 1808 e 1821, mas hoje um turista desavisado poderia passar por ele sem tomar conhecimento dessa informação. Com exceção de uma carruagem antiga, de madeira e sem identificação, exposta junto à janela direita da entrada principal, nada ali faz referência a seu passado histórico. Na parede ao lado da carruagem, um mapa em alto-relevo mostra os prédios e arranha-céus do centro do Rio de Janeiro atual. É uma curiosidade fora de contexto. Em se tratando do Paço Imperial, seria mais razoável que se tentasse reproduzir a cidade colonial da época em que a corte portuguesa chegou ao Brasil.

Os aposentos vazios são usados de forma esporádica para eventos que, na maioria das vezes, são deslocados do contexto. No começo de novembro de 2005, a sala do trono, no andar superior, onde D. João VI despachava com seus ministros, estava ocupada por uma exposição de artes plásticas em que rosários católicos espalhados pelo chão reproduziam o formato da genitália masculina. Ainda que seja da natureza da arte surpreender e desafiar o senso comum, a exibição desses objetos naquele local, que por tantos anos abrigou uma das cortes mais religiosas e carolas da Europa, se resumia a uma provocação de mau gosto.

O desprezo pela conservação dos monumentos históricos nunca foi novidade no Brasil. No caso de D. João VI, porém, há um aspecto adicional que acentua a sensação de esquecimento forçado que o cerca. É a forma caricata com que o rei e sua corte costumam ser tratados nos livros, no cinema, no teatro e na televisão. Um exemplo é o filme Carlota Joaquina - a princesa do Brasil, da atriz e diretora Carla Camurati. A rainha, que dá nome à obra, é apresentada como uma mulher histérica, pérfida e ninfomaníaca. D. João, como um monarca abobalhado e glutão, incapaz de tomar uma só decisão. Enquanto escrevia este livro, perguntei a Camurati, num almoço em São Paulo, por que havia construído os personagens dessa forma. “Porque não pude evitar”, ela me respondeu. “Quando comecei a pesquisar, fui me deparando com tipos cada vez mais hilários e absurdos, a tal ponto que se tornou irresistível retratá-los assim.”

O propósito deste livro é resgatar a história da corte portuguesa no Brasil do relativo esquecimento a que foi confinada e tentar devolver seus protagonistas à dimensão mais correta possível dos papéis que desempenharam duzentos anos atrás. Como se verá nos capítulos adiante, esses personagens podem ser, sim, inacreditavelmente caricatos, algo que se poderia dizer de todos os governantes que os seguiram, inclusive alguns muito atuais. Obviamente, o Brasil de D. João VI não se resume a graçolas. A fuga da família real para o Rio de Janeiro ocorreu num dos momentos mais apaixonantes e revolucionários do Brasil e de Portugal, em que grupos de interesses tão diversos, como monarquistas, republicanos, federalistas, separatistas, abolicionistas, traficantes e senhores de escravos, se opunham numa luta pelo poder que haveria de mudar radicalmente a história desses dois países. É natural, portanto, que a visão que se tem de D. João VI, Carlota Joaquina e sua corte permaneça ainda hoje contaminada pelas disputas políticas em que se envolveram. Isso explica tanto a sensação de abandono que cerca os lugares frequentados pela realeza como a carga de preconceito que ainda a acompanha nas obras que inspirou. (...)

12 comentários:

  1. Quando eu era criança era comum as pessoas dizerem que o Brasil era o país do futuro, provavelmente por alguma campanha dos militares, mas a realidade sempre fala mais alto e agora está mais para país SEM futuro.

    O texto do historiador mostra um dos fatores para o país esta mergulhado numa crise institucional e existencial, não conhece sua própria história, não deseja conhecer e inventa fantasias sobre o passado, presente e futuro.

    PS: tem até um "inteligente" que chamou o D. Pedro I, que abdicou de dois tronos, de megalomaníaco. Lembra?

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    1. Da minha família, um tio foi o primeiro e emigrar da Suiça para o Brasil, nos idos de 1947, quando o Brasil já era apontado como o país do futuro.
      Um presidente do conselho de estado da Suiça também afirmou: o Brasil é o país do futuro e sempre o será.

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  2. (argento) ... a História do Brasil é, não sem motivo, desconhecida dos braZileiros; resume-se ao ensino de uma insossa "coletânea" de datas - um povo, nação, país sem memória é presa fácil dos embusteiros e aproveitadores e, por falta de referenciais, condena-se, automaticamente, a não ter futuro .,, quem ganhará o BBB15?

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    1. (argento) ... além de mal contada, a História do Brasil é Mau Contada (sic) ...

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Eu já li o 1808 faz tempinho. É um livro que podemos sempre voltar a ler.

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    1. (argento) se puder, leia a trilogia 1808, 22 e 89, uma pena honesta, não acadêmica, vale a pena

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    2. Vou procurar em Portugal o 22 e o 89.
      Obrigado pela dica, para ficar torrando no sol, só mesmo lendo um bom livro.

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  5. Outro livro que é também pode ser reelido de vez em quando e: Guia Politicamente Incorreto da Historia do Brasil - Leandro Narloch. Gostei muito, é uma leitura leve e vibrante, é diferente da literatura do Laurentino, mas um bom livro.

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  6. Já que vocês estão falando em livros de História do Brasil, um dos imperdíveis -especialmente para consultas -, embora formal - mas não didático - é História do Brasil, de Boris Fausto.

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    1. (argento) ... com direito a LINK de vídeo

      http://historiaonline.com.br/hotv/documentarios/historia-do-brasil-boris-fausto/

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  7. Para não ficar de fora nas indicações de livros, Uma Gota de Sangue do Demétrio Magnoli é uma boa sugestão para conhecer e entender a história da escravidão. Eu não cheguei a ler o livro, mas foi porque as questões que ele apresentou em entrevistas e palestras já eram do meu conhecimento e eu já li muito sobre a escravidão, mas é uma ótima dica para quem deseja encontrar em um único texto aquilo que eu encontrei em dezenas de textos dispersos, além de ser, provavelmente, mais aprofundado e com mais informações.

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