Ainda não sei qual é a minha posição sobre a redução da
maioridade penal. Concordo que há um problema de impunidade de adolescentes
violentos, mas o projeto parece mais uma manifestação do mesmo populismo penal
que motivou a lei do feminicídio. O que eu sei é que os dois lados da discussão
precisam ter mais cuidado com os números e argumentos que apresentam.
Nas últimas semanas, o Globo, a Folha de S. Paulo, o Diário
de S. Paulo, a revista Exame, o portal Terra, a edição impressa de Veja e quase
todas as ONGs e políticos contrários à redução disseram que menos de 1% dos
homicídios no Brasil são cometidos por adolescentes. A Folha reproduziu o dado
num editorial e em pelo menos dois artigos, de Vladimir Safatle e Ricardo Melo.
Havia razão para publicar a porcentagem, pois ela parecia
vir de órgãos de peso – o Ministério da Justiça e o Unicef. Acontece que a
estatística do 1% de crimes cometidos por adolescentes simplesmente não existe.
Todas as instituições que jornais e revistas citam como fonte negam tê-la
produzido.
O MITO DO 1%
Numa nota contra a redução da maioridade, o Escritório das
Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) reproduziu a estimativa e deu a
Secretaria de Direitos Humanos como referência. Mas a Secretaria de Direitos
Humanos diz que nunca produziu uma pesquisa com aqueles dados.
O Congresso em Foco, hospedado pelo UOL, afirma que “segundo
o Ministério da Justiça, menores cometem menos de 1% dos crimes no país”. Um
punhado de deputados e sites do PT dizem a mesma coisa. Mas basta um telefonema
para descobrir que o Ministério da Justiça tampouco registra dados de faixa
etária de assassinos. “Devem ter se baseado na pesquisa do Unicef”, me disse um
assessor de imprensa do ministério.
Seria então o Unicef a fonte da estimativa? Uma reportagem
do Globo de semana passada parece resolver o mistério: “Unicef estima em 1% os
homicídios cometidos por menores no Brasil”. Mas o Unicef também nega a autoria
dos dados. Fiquei dois dias insistindo com o órgão para saber como chegaram ao
valor, até a assessora de imprensa admitir que “esse número de 1% não é nosso,
é do Globo”. Na reportagem, o próprio técnico do Unicef, Mário Volpi, admite
que a informação não existe. “Hoje ninguém sabe quantos homicídios são
praticados por esse jovem de 16 ou 17 anos que é alvo da PEC.” Sabe-se lá o
motivo, o Globo preferiu ignorar a falta de dados e repetir a ladainha do 1%. O
estranho é que o Unicef não emitiu notas à imprensa desmentido a informação.
Também fui atrás da Secretaria de Segurança Pública de São
Paulo, mas nada: o governo paulista não produz estimativas de faixa etária de
assassinos, somente de vítimas. Governos estaduais são geralmente a fonte
primária de relatórios sobre violência publicados por ONGs e instituições
federais. Se o estado com maior número absoluto de assassinatos no Brasil não
tem o número, é difícil acreditar que ele exista. Resumindo: está todo mundo
citando uma pesquisa fantasma.
Na verdade, uma estatística parecida até existiu há mais de
uma década. Em 2004, um pesquisador da Secretaria da Segurança Pública de São
Paulo lançou um estudo afirmando que menores de idade eram responsáveis por
0,97% dos homicídios e 1,5% dos roubos. Foi assim que nasceu a lenda do 1% de
crimes cometidos por adolescentes.
Mas a pesquisa de 2004 tropeçou num erro graúdo. Ao calcular
a porcentagem, os técnicos dividiram o número de menores presos por homicídio
pelo total de homicídios no estado. Sem ligar para o fato de que em 90% dos
assassinatos a identidade dos agressores não é revelada, pois a polícia não
consegue esclarecer os crimes.
Imagine que, de cada 100 homicídios no Brasil, apenas oito
são esclarecidos, e que desses oito um foi cometido por adolescentes. Seria um
absurdo concluir que apenas um em cada cem homicídios foi praticado por
adolescentes. Um estatístico honesto diria que um em cada oito crimes
esclarecidos (ou 12,5%) foi cometido por menores de idade.
Adotando esse método, os números brasileiros se aproximariam
dos de outros países. Nos Estados Unidos, menores praticaram 7% dos homicídios
de 2012. No Canadá, 11%. Na Inglaterra, 18% dos crimes violentos (homicídio,
tentativa de homicídio, assalto e estupro) vieram de pessoas entre 10 e 17
anos. Tem algo errado ou os adolescentes brasileiros são os mais pacatos do
mundo?
Sim, tem algo errado: a estatística.
O MITO DOS 36% DE VÍTIMAS
Há ainda outro malabarismo. Pesquisas sobre causas de morte
de adolescentes mostram que, dos jovens que não morreram de causas naturais,
36% foram assassinados. Muita gente está usando essa porcentagem para uma
afirmação bem diferente: a de que os adolescentes são 36% das vítimas de
homicídio no país. Tiraram a porcentagem de uma frase e a colocaram em outra. O
número real é bem menor. Em São Paulo, jovens entre 15 e 19 anos são 9% das
vítimas. Se dividirmos em partes iguais, os mortos com 15 a 17 anos são 5,4% do
total.
Até mesmo o Unicef concorda com o número mais modesto. A
entidade diz que 33 mil brasileiros entre 12 e 18 anos foram assassinados entre
2006 e 2012. O total de homicídios nesse período foi de 350 mil pessoas,
segundo o Mapa da Violência. Dá 9% de menores de idade no total de vítimas. É
estranho ver o Unodc, também da ONU, repetir o mito de que 36% das vítimas de
homicídio são adolescentes. É a ONU contradizendo a própria ONU.
A FALHA DO ARGUMENTO
Alguém pode dizer que o número de jovens homicidas continua
baixo. Mesmo se for 1% ou 10%, a redução da maioridade não resolveria muita
coisa. Acontece que os brasileiros entre 15 e 18 anos são, segundo o IBGE, 8%
da população. Afirmar que adolescentes respondem por uma pequena parte dos
crimes faz parecer que eles não são culpados pela violência do país, quando
provavelmente são tão ou um pouco mais violentos que a média dos cidadãos.
Não há aí nenhuma novidade. Quem já passou pela adolescência
sabe que essa é a época da vida em que mais nos sujeitamos a brigas, perigos e
transgressões. Não é preciso ser um grande estudioso do comportamento humano
para concluir que a juventude é a época de fazer tolice.
Além disso, a estatística compara uma faixa etária muito
estreita – jovens entre 15 e 17 anos – com uma muito ampla – qualquer adulto
com mais de 18 anos. É claro que o segundo grupo vai ficar com o maior pedaço.
Mas se confrontarmos faixas etárias equivalentes, a violência é similar.
Brasileiros entre 35 e 37 anos também são responsáveis por uma pequena
porcentagem de assassinatos. Deveríamos deixar de condená-los, já que a prisão
deles não resolveria o problema de violência no Brasil? Não, claro que não.
Os opositores da redução da maioridade penal ainda têm uma
boa lista de razões para lutar contra o projeto de lei. Argumentos não faltam.
O que falta é cuidado com os números.
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