Um filme que não deveria existir - Carlos Andreazza
Esquerda acostumou-se à hegemonia político-cultural de tal
forma que é hoje incapaz de tolerar, ainda que apenas taticamente, a mais
mínima ‘cota outro lado’
A intelectualidade que — desde as universidades, redações,
palcos e estúdios — promoveu e alicerçou o projeto criminoso de poder ora
desmascarado não cai necessariamente com a estrela. E nem por um segundo para
de se mover. Governos esquerdistas tombam podres, a farsa de seus líderes
exposta como fratura; mas isso normalmente sem que a hegemonia
político-cultural que os sustentou seja sequer tisnada.
À tomada — político-econômica — de um país precede a
cooptação do intelectual: a frouxidão da independência, o aluguel do
pensamento, a ridicularização da sensibilidade moral, a desarticulação do
contraditório, a ascensão de patrulhas em detrimento da consciência individual.
Não se chega às condições privilegiadas para assaltar o
Estado sem que à sociedade seja impingida longa preparação anestésica de ordem
moral-cultural, por meio do que, ministrada a apatia, cultiva-se, por exemplo,
a mentira de que há campo aberto para o debate entre divergentes. A estratégia
dissimulada é a própria armadilha: intimida-se o diverso (até anulá-lo) pelo
controle — pelo monopólio artificial — da diversidade.
A cineasta Gabi Saegesser é vítima e agente dessa perversão
com método. Desde o alto do pedestal de superioridade onde seus
curtas-metragens bancados pelo Estado a colocaram, declarou: “O filme vai
contra qualquer possibilidade de diálogo, fala sobre o filósofo Olavo de
Carvalho, um dos maiores representantes do conservadorismo de direita.” Ela,
que se definirá como alguém livre, refere-se ao documentário “O jardim das aflições”,
de Josias Teófilo (que o realizou sem um tostão de origem pública), e reage ao
que compreende ser impossibilidade de diálogo, claro, interditando qualquer
possibilidade de diálogo.
Decerto julgando-se corajosa, Saegesser compõe o grupo de
cineastas que decidiu boicotar um festival, o Cine PE (afinal cancelado),
porque a organização da mostra ousou incluir no programa duas obras que, de
acordo com a patrulha, representam “um desrespeito à visão política e social de
outros filmes”. A compreensão dessa galera sobre o que seja “desrespeito” é
como uma revelação no parquinho: “Somos mimados!” Não é necessário escrever que
a turma empastela o que não viu, nem que não são os filmes os que têm “visão
política e social”. Tampouco é preciso apontar o vergonhoso de que,
considerando-se artistas, não se constranjam em investir na censura. (Imagino
em que andar do inferno estaria Teófilo se fizesse uma ressalvazinha ao
festival pela inclusão de “Vênus: Filó, a fadinha lésbica” na programação.)
A esquerda brasileira, especialmente aquela que sequestrou o
cinema, acostumou-se à hegemonia político-cultural de tal forma que é hoje
incapaz de tolerar, ainda que apenas taticamente, a mais mínima “cota outro
lado” — no caso, dois filmes entre 26 selecionados: além de “O jardim das
aflições”, “Real”, sobre o plano econômico que nomeia a moeda nacional, baseado
no livro “3000 mil dias no bunker”, de Guilherme Fiuza.
A obra sobre Olavo de Carvalho, ao longo dos últimos meses,
vinha sendo rejeitada por todos os festivais em que seus produtores tentaram
inscrevê-la. Já ali, na recusa formal, era possível ler a matriz ideológica do
veto — cuja escritura velada ainda assim Teófilo não deixou de denunciar. Em
vão. Tudo ia bem — de acordo com a cartilha silenciosa de interdição cumprida,
há décadas, pela patota que se crê defensora da liberdade, muito à vontade para
chamar os outros de golpistas — até o Cine PE furar o bloqueio. Então, como só
raramente, as máscaras caíram.
Há novidade, pois, na blitz dos conspiradores que dominam a
produção cultural no Brasil; porque, ao reagirem, acabaram por desnudar suas
ferramentas. De hábito, sabe-se, a mordaça se aplica nos bastidores,
tacitamente, sem necessidade de manifestação pública, e aos que discordam dessa
simonalização — para escapar da máquina de assassinar reputações — convêm se
omitir. (Qual cineasta brasileiro, mesmo entre os graúdos, protestou, até
agora, contra a barbárie em curso?) Esse conjunto castrador prospera à sombra,
protegido por códigos que blindam os grupos de pressão — a militância que se
travestiu em arte — de terem a truculência descoberta.
O alarme de que a Coreia do Norte em que suas ideias se
elogiam tivesse de conviver, dentro de um festival, com a “direita
conservadora" resultou, porém, em que as aparências cedessem à natureza e
a violência — o ímpeto de apagar o outro — precisasse emergir do bueiro,
situação em que os senhores do discurso da diversidade, os monopolistas do
pluralismo, não pestanejaram antes de revelar o Guilherme Boulos (os que vivem
de boquinha) ou mesmo o Marcola (os que vivem da boca) interior.
O terrorismo cultural, vê-se, não é bonito, exibe os
artifícios da educação totalitária; mas — atenção — há ciência também na
brutalidade. Não é, portanto, uma esquerda perdida, ultrapassada, excepcional,
a que boicota e censura — mas a própria esquerda, a que temos, sob a luz do
sol. Não é belo, mas não deixa de ser liberdade de expressão.
Ricardo
ResponderExcluirColei esta beleza de post do Andreazza e vou publicar no blog.