terça-feira, 16 de maio de 2017

Cinerastas, intelequituais e outros lixos

Um filme que não deveria existir - Carlos Andreazza

Esquerda acostumou-se à hegemonia político-cultural de tal forma que é hoje incapaz de tolerar, ainda que apenas taticamente, a mais mínima ‘cota outro lado’

A intelectualidade que — desde as universidades, redações, palcos e estúdios — promoveu e alicerçou o projeto criminoso de poder ora desmascarado não cai necessariamente com a estrela. E nem por um segundo para de se mover. Governos esquerdistas tombam podres, a farsa de seus líderes exposta como fratura; mas isso normalmente sem que a hegemonia político-cultural que os sustentou seja sequer tisnada.

À tomada — político-econômica — de um país precede a cooptação do intelectual: a frouxidão da independência, o aluguel do pensamento, a ridicularização da sensibilidade moral, a desarticulação do contraditório, a ascensão de patrulhas em detrimento da consciência individual.

Não se chega às condições privilegiadas para assaltar o Estado sem que à sociedade seja impingida longa preparação anestésica de ordem moral-cultural, por meio do que, ministrada a apatia, cultiva-se, por exemplo, a mentira de que há campo aberto para o debate entre divergentes. A estratégia dissimulada é a própria armadilha: intimida-se o diverso (até anulá-lo) pelo controle — pelo monopólio artificial — da diversidade.

A cineasta Gabi Saegesser é vítima e agente dessa perversão com método. Desde o alto do pedestal de superioridade onde seus curtas-metragens bancados pelo Estado a colocaram, declarou: “O filme vai contra qualquer possibilidade de diálogo, fala sobre o filósofo Olavo de Carvalho, um dos maiores representantes do conservadorismo de direita.” Ela, que se definirá como alguém livre, refere-se ao documentário “O jardim das aflições”, de Josias Teófilo (que o realizou sem um tostão de origem pública), e reage ao que compreende ser impossibilidade de diálogo, claro, interditando qualquer possibilidade de diálogo.

Decerto julgando-se corajosa, Saegesser compõe o grupo de cineastas que decidiu boicotar um festival, o Cine PE (afinal cancelado), porque a organização da mostra ousou incluir no programa duas obras que, de acordo com a patrulha, representam “um desrespeito à visão política e social de outros filmes”. A compreensão dessa galera sobre o que seja “desrespeito” é como uma revelação no parquinho: “Somos mimados!” Não é necessário escrever que a turma empastela o que não viu, nem que não são os filmes os que têm “visão política e social”. Tampouco é preciso apontar o vergonhoso de que, considerando-se artistas, não se constranjam em investir na censura. (Imagino em que andar do inferno estaria Teófilo se fizesse uma ressalvazinha ao festival pela inclusão de “Vênus: Filó, a fadinha lésbica” na programação.)

A esquerda brasileira, especialmente aquela que sequestrou o cinema, acostumou-se à hegemonia político-cultural de tal forma que é hoje incapaz de tolerar, ainda que apenas taticamente, a mais mínima “cota outro lado” — no caso, dois filmes entre 26 selecionados: além de “O jardim das aflições”, “Real”, sobre o plano econômico que nomeia a moeda nacional, baseado no livro “3000 mil dias no bunker”, de Guilherme Fiuza.

A obra sobre Olavo de Carvalho, ao longo dos últimos meses, vinha sendo rejeitada por todos os festivais em que seus produtores tentaram inscrevê-la. Já ali, na recusa formal, era possível ler a matriz ideológica do veto — cuja escritura velada ainda assim Teófilo não deixou de denunciar. Em vão. Tudo ia bem — de acordo com a cartilha silenciosa de interdição cumprida, há décadas, pela patota que se crê defensora da liberdade, muito à vontade para chamar os outros de golpistas — até o Cine PE furar o bloqueio. Então, como só raramente, as máscaras caíram.

Há novidade, pois, na blitz dos conspiradores que dominam a produção cultural no Brasil; porque, ao reagirem, acabaram por desnudar suas ferramentas. De hábito, sabe-se, a mordaça se aplica nos bastidores, tacitamente, sem necessidade de manifestação pública, e aos que discordam dessa simonalização — para escapar da máquina de assassinar reputações — convêm se omitir. (Qual cineasta brasileiro, mesmo entre os graúdos, protestou, até agora, contra a barbárie em curso?) Esse conjunto castrador prospera à sombra, protegido por códigos que blindam os grupos de pressão — a militância que se travestiu em arte — de terem a truculência descoberta.

O alarme de que a Coreia do Norte em que suas ideias se elogiam tivesse de conviver, dentro de um festival, com a “direita conservadora" resultou, porém, em que as aparências cedessem à natureza e a violência — o ímpeto de apagar o outro — precisasse emergir do bueiro, situação em que os senhores do discurso da diversidade, os monopolistas do pluralismo, não pestanejaram antes de revelar o Guilherme Boulos (os que vivem de boquinha) ou mesmo o Marcola (os que vivem da boca) interior.

O terrorismo cultural, vê-se, não é bonito, exibe os artifícios da educação totalitária; mas — atenção — há ciência também na brutalidade. Não é, portanto, uma esquerda perdida, ultrapassada, excepcional, a que boicota e censura — mas a própria esquerda, a que temos, sob a luz do sol. Não é belo, mas não deixa de ser liberdade de expressão.


Um comentário:

  1. Ricardo
    Colei esta beleza de post do Andreazza e vou publicar no blog.

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