O cidadão pega a Constituição de 1988, começa a ler e fica
empolgado quando se depara com o Artigo 5º que diz: “TODOS SÃO IGUAIS PERANTE A
LEI, SEM DISTINÇÃO DE QUALQUER NATUREZA, GARANTINDO-SE AOS BRASILEIROS E AOS
ESTRANGEIROS RESIDENTES NO PAÍS A INVIOLABILIDADE DO DIREITO À VIDA, À
LIBERDADE, À IGUALDADE, À SEGURANÇA E A PROPRIEDADE”.
“Beleza!”, diz ele, principalmente ao desfiar os parágrafos
que falam de liberdade disso e daquilo e vibra quando chega ao parágrafo XXXVII
e lê que “NÃO HAVERÁ JUÍZO OU TRIBUNAL DE EXCEÇÃO”.
Como ele é persistente, vai em frente, mas chegando ao Artigo
102º que diz que “COMPETE AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, PRECIPUAMENTE, A GUARDA
DA CONSTITUIÇÃO” leva um susto ao ver que logo no primeiro parágrafo algumas
das competências do STF são: “I - PROCESSAR E JULGAR, ORIGINARIAMENTE: (...) b)
NAS INFRAÇÕES PENAIS COMUNS, O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, O VICE-PRESIDENTE, OS
MEMBROS DO CONGRESSO NACIONAL, SEUS PRÓPRIOS MINISTROS E O PROCURADOR-GERAL DA
REPÚBLICA; c) NAS INFRAÇÕES PENAIS COMUNS E NOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE, OS
MINISTROS DE ESTADO E OS COMANDANTES DA MARINHA, DO EXÉRCITO E DA AERONÁUTICA,
OS MEMBROS DOS TRIBUNAIS SUPERIORES, OS DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E OS
CHEFES DE MISSÃO DIPLOMÁTICA DE CARÁTER PERMANENTE”.
“Peraí!”, exclama. “Não disseram lá em cima que ‘não haverá
juízo ou tribunal de exceção’? Não entendi!”
O cidadão, que é leigo em Direito, mas não é idiota, acabou
de descobrir um privilégio que afronta diretamente o Artigo 5º da Constituição
Federal, um “foro privilegiado” ou “foro especial por prerrogativa de função”, eufemismo
jurídico inutilmente criado com o sentido desonesto de disfarçar a vantagem
escancarada autoconcedida pelas ditas autoridades.
Não satisfeito, o cidadão sai fuçando aqui e ali e descobre
que a justificativa é a necessidade de se proteger o exercício da função ou do
mandato público. Dizem eles que, como é de interesse público que ninguém seja
perseguido pela justiça por estar em determinada função pública, então
considera-se melhor que algumas autoridades sejam julgadas pelos órgãos
superiores da justiça, tidos como mais independentes.
“Papo furado!”, indigna-se.
O humor do cidadão piora quando descobre em suas pesquisas que
tem mais gente, muito mais, incluída no tal “foro especial por prerrogativa de
função”. São os Governadores, julgados, em crimes comuns, pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ); são os prefeitos, julgados pelos Tribunais de
Justiça estaduais; são os desembargadores dos tribunais de justiça, membros de
Tribunais de Contas estaduais e municipais, além de membros de Tribunais
Regionais (TRF, TRT, TRE, etc), julgados pelo STJ; são os Juízes Federais, do Trabalho,
Juízes Militares e Procuradores da República, julgados pelos Tribunais
Regionais Federais e são os membros do Ministério Público.
“Caraca, são 55 mil!”, estarrece-se e parte para pesquisar
estatísticas.
“Bom, vamos ver então a eficiência desses tais tribunais de
exceção. Pelo menos isso tem que corresponder.”, decide.
Tudo começou bem, quando o cidadão verificou que até janeiro
de 2018 a primeira instância da Justiça do Paraná contabilizou 72 acusações
criminais, 37 delas já com sentenças, contra 289 pessoas. Foram 177 condenações
até 2017, contra 113 pessoas, totalizando 1.753 anos e 7 meses de penas. Os
registros mostram ainda 1.765 procedimentos instaurados, 881 mandados de busca
e apreensão, 222 mandados de condução coercitiva, 101 prisões preventivas e 163
acordos de delação premiada. Na Justiça do Rio de Janeiro, as 25 denúncias do
MPF, contra 134 pessoas, já resultaram em 4 sentenças, 31 condenados, com penas
somadas de 377 anos e 5 meses de reclusão, além de 57 prisões preventivas, 34
conduções coercitivas, 211 buscas e apreensões, 15 acordos de delação
homologados e 17 operações em conjunto com a Polícia Federal e a Receita
Federal.
“Maravilha, mas isso é o pessoal que perdeu ou nunca teve o
tal foro privilegiado, é justiça comum.” E partiu para o STF. E foi aí que a
coisa pegou.
Começou com o levantamento feito pela VEJA em 2015: dos 500
parlamentares que foram alvo de investigação ou de ação penal no STF nos
últimos 27 anos, apenas 16 foram condenados. Desses, 8 foram presos. Os demais
ou recorreram, ou contaram com a prescrição para se livrar das ações penais.
A coisa piorou quando leu que desde março de 2015, 193
inquéritos no âmbito da Lava Jato foram instaurados no STF. Entre eles, 36
resultaram em denúncias criminais e 7 em ações penais que envolvem 100
acusados. Segundo dados obtidos no site do Ministério Público Federal (MPF),
121 acordos de colaboração premiada já foram submetidos ao Supremo até janeiro
deste ano. Só que o número de condenações de políticos, no entanto, ainda é
zero. Isso mesmo, cidadão, zero!
“Quer dizer então que o foro é biprivilegiado? Além da
prerrogativa de função os criminosos têm a prerrogativa de contar com um foro
conivente com seus crimes?”, e decidiu, danado da vida, mudar-se para Serra da
Saudade, município de Minas, com 812 habitantes, e candidatar-se a vereador.
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