Entrevista de Fernando Gabeira ao Estadão
“Seria excelente se discutíssemos com paixão, compreendendo
que as ideias brigam, mas as pessoas não devem brigar.”
Jornalista e escritor, hoje com programa na GloboNews e
coluna no jornal O Estado de S.Paulo, aos 77 anos, Fernando Gabeira
protagonizou importantes momentos da vida política brasileira. Mineiro de Juiz
de Fora, mas muito mais carioca da gema, combateu a ditatura; foi candidato a
governo e prefeitura do Rio de Janeiro e também à presidência da República;
deputado federal por quatro mandatos consecutivos; e pioneiro na defesa do meio
ambiente. Apesar do admirável e longo percurso na política acabou por abandonar
a atividade. Voltou para as redações, onde começou sua vida profissional, e
dedica-se também à produção literária.
Gabeira participou da luta armada contra a ditadura militar
como militante do movimento Revolucionário Oito de Outubro, o famoso MR8. Em
1969, sequestrou, junto com mais 11 jovens guerrilheiros, o embaixador
norte-americano Charles Elbrick. O episódio foi relatado em seu livro “O que é
isso companheiro?”, que virou um clássico da literatura nacional. Um ano
depois, ao resistir à prisão, levou um tiro nas costas que perfurou o fígado,
mas resistiu. Passou então uma década exilado no Chile, Itália e, principalmente,
na Suécia onde estudou Antropologia pela Universidade de Estocolmo.
Quando a ditadura entrou em declínio, Gabeira voltou ao país
e virou, novamente, assunto nacional. Não mais pela ousadia de, ainda garoto,
capturar diplomata e enfrentar os anos de chumbo. No verão de 1980, o
ex-guerrilheiro, acostumado a frequentar nu as praias da Grécia, passou a
comparecer ao Posto Nove, em Ipanema, vestido com uma tanga lilás de crochê.
Com isso pretendia debater o machismo e a diversidade sexual. Esse foi outro
aspecto político de sua trajetória: a defesa de pautas polêmicas como
profissionalização da prostituição, casamento gay e legalização da maconha.
Nesse maio de 2018, em que se comemora os 50 anos de maio de
1968, o Brasil atravessa uma de suas maiores crises – política, moral e
econômica. Os momentos são distintos, mas a data emblemática. Para pensar o
contexto atual do país sob essa perspectiva histórica, o blog entrevistou
Fernando Gabeira. Discreto, elegante e muito lúcido, o jornalista retirou-se da
política, mas não desistiu do Brasil.
Por Juliana Cunha Lima Neves
*Estamos em maio de 2018, comemorando 50 anos de maio de
1968. Para o senhor, que foi testemunha e protagonista de nossa história
política, o Brasil está melhor? Valeu a pena a luta?
A luta que houve no Brasil não está circunscrita apenas ao
que houve, em 1968. Ela é muito mais ampla. Valeu a pena porque conquistamos a
democracia, ultrapassamos o primeiro obstáculo que era a impossibilidade de escolher
diretamente um presidente da República, surgiu o movimento em torno das
eleições diretas e, depois disso, houve um processo democrático que chegou ao
ponto que chegou.
Hoje o sistema partidário está falido, mas as instituições
que o regulam estão trabalhando no sentido de punir responsáveis pelos erros
que aconteceram, que é o caso da Lava Jato. E prepara-se agora, no processo
eleitoral, uma resposta articulada da sociedade sobre tudo isso que aconteceu.
Evidentemente que é uma resposta limitada. Não houve uma reforma política de
fato. As coisas estão de tal maneira, que as portas da renovação estão muito
estreitas. Mas, o processo democrático está em curso e teremos que partir dessa
crise para reconstruir.
Não que o país esteja destruído. Reconstruir o sistema
político, partidário, as estruturas políticas com um objetivo de estabelecer,
novamente, uma conexão entre o sistema político e a sociedade.
*E nos costumes, no que o senhor acha que avançamos ou regredimos?
Na verdade os movimentos no Brasil não se deram só no campo
da política, mas no da cultura também, e o tropicalismo é um exemplo disso. O
maio de 1968 e as ideias de 1968 no exterior são um pouco diferentes do que
aconteceu aqui. No Brasil foi a partir do declínio da ditadura militar que
começaram mais fortemente as pretensões do feminismo, da luta contra o racismo,
dos homossexuais. Isso estava em gestação no fim da ditadura militar. Quando
cheguei ao Brasil, em 1979, havia um jornal chamado Lampião que era o primeiro
porta voz do movimento gay e surgiu com uma distância grande de 1968. Da mesma
maneira, o movimento feminista ganhou maior dimensão no país a partir da
democratização. Esses movimentos se fortaleceram no processo de democratização.
O movimento de 1968 se expressou em diferentes países e em
tempos diferentes. Aqui a luta principal era em torno da derrubada do governo
autoritário. No exterior era uma luta mais cultural. O slogan de nosso “maio de
1968” era “proibido proibir” ou “desejamos o impossível”. São coisas que
expressavam uma situação em que o movimento dos trabalhadores, já não era mais
o grande sujeito das transformações. As expressões não eram mais econômicas,
eram culturais. Esse processo foi mais lento no Brasil, quando as expressões
culturais passam a ser mais importantes.
Existe hoje no Brasil uma grande presença do feminismo, do
movimento negro, do movimento gay. Todas essas questões foram assimiladas.
Agora, o quanto avançamos depende de como vemos. Se entendermos o avanço em
termos de nossas identidades culturais, avançamos muito. Mas, precisamos
entender também qual foi o preço do avanço das identidades culturais, que
enfraqueceram um pouco a força da luta nacional. Começou a ter uma divisão bem
forte na própria sociedade, que não está apenas nas identidades culturais, mas
em toda luta política.
Nós nos dividimos muito mais do que estávamos divididos no
passado. Na luta pelas Diretas estávamos todos no mesmo palanque. A luta
nacional era uma coisa pensada. Tínhamos objetivos nacionais. Com o nível de
radicalização e de hostilidade recíproca, que aconteceram de lá para cá, as
ideias de um projeto nacional em torno de alguma coisa que supere identidades e
diferenças ideológicas é muito difícil hoje. Talvez mais do que no passado.
*O que é ser progressista?
Para responder a esta pergunta, é preciso avaliar a palavra
progresso. Que tipo de progresso se quer. Tem progressista que quer o
crescimento econômico. Tem o progressista que não deseja o progresso econômico
a todo custo, mas um progresso sustentável. Não só na preservação de recursos
naturais, mas também em uma ética das nova geração. A ética nas novas gerações
é progressista.
*Como o senhor se define hoje politicamente?
Eu não sinto essa necessidade de me definir. Tive uma
formação mais de esquerda, procuro avaliar o que considero correto ou não nas
ideias de esquerda. E, hoje, tomo posições um pouco desconfiado de uma rigidez
ideológica. Busco encontrar soluções que, independente de serem direita ou
esquerda, me pareçam mais adequadas. Eu respeito as pessoas que são de esquerda
e de direita, mas nem sempre elas têm razão em tudo.
*O que é ser esquerda?
Não acho a forma de ser de esquerda no Brasil adequada. Na
minha opinião, ser de esquerda hoje é compreender, primeiro, que a democracia
não é apenas uma tática. A democracia não é um pretexto para se chegar ao
controle total do poder. A democracia é uma visão estratégica e algo a se
conquistar progressivamente, cada vez mais. Isso já define um nível de esquerda
fundamental. Ser de esquerda também significa avaliar se ela tem alguma
alternativa para o capitalismo. É algo para se discutir. Se a alternativa para
o capitalismo se produz na mesa de trabalho ou vai se mostrar ao longo do
desenvolvimento do próprio capitalismo.
Em outras palavras, se a história tem script ou não. Eu sou
daqueles que acham que hoje a história não tem script pré-determinado. Então,
nesse sentido, eu não sou de esquerda. Não tenho nenhuma fé no curso da
história, em determinado rumo.
*O Brasil atravessa uma de suas maiores crises – política,
moral e econômica. Passamos pelo impeachment de Dilma Rousseff, por um período
de grave recessão na economia, temos enfrentado o combate a corrupção e
testemunhado um conflito institucional entre judiciário e classe política. Como
desdobramentos tivemos intervenção federal no Rio de Janeiro, a morte de
Marielle e a prisão de Lula. Qual a sua visão sobre esse momento que vivemos?
O momento é de pensar nas eleições de 2018 e discutir,
amplamente, a reconstrução do país em novas bases. Isso, para mim, é o
principal do momento, que está ofuscado pelos fragmentos do passado. A prisão
do Lula, todas as coisas que foram avaliadas em termos de corrupção, o
desenvolvimento da Lava Jato já são hoje secundários frente a necessidade que
temos de olhar para frente. De pensar como vamos sair dessa crise e buscar
algum entendimento.
Seria excelente se discutíssemos com paixão, mas
discutíssemos também compreendendo que as ideias brigam, mas as pessoas não
devem brigar. Seria necessária uma discussão que clareasse o rumo dos políticos
sobre o que fazer, a partir de janeiro de 2019.
*As eleições de 2018 podem apaziguar a instabilidade
política do país?
Eu não acho. Nas eleições sempre há muita polarização. Mas,
se conseguirmos retirar essa polarização da cena principal, o lado mais radical
da polarização, fica mais fácil a gente se aproximar de alguns consensos
nacionais. Agora é inevitável que exista polarização de extremos. É inevitável
que pelas circunstâncias históricas e desenvolvimento da conjuntura, o extremo
mais a direita cresça e chegue aos seus limites nessas eleições. Alguns
extremos da direita chegaram no segundo turno em outros países como na França
na eleição do Macron e Marie Le Pen. Esse processo me parece que vai também se
configurar no Brasil.
*O senhor já tem candidato a presidência da República?
Não (risos). Nessas eleições minha intenção não é comentar
as características de um ou outro candidato. Mas, discutir coisas que possam
ser consensuais para tentar levar qualquer vencedor a considerar isso uma
demanda que tem que ser atendida.
*Além de jornalista e escritor, o senhor tem um percurso
político admirável: combateu a ditatura,
foi candidato a governo e prefeitura do Rio de Janeiro, também a presidência da
República, foi deputado federal por mais de um mandato, defendeu causas nobres
e caras ao Brasil, principalmente, nas questões ambientais. Por que o senhor
continuou jornalista e escritor e abandonou a política?
Perdi quase todas as eleições, de modo que não posso ser
considerado um vencedor nesse campo. Fui eleito como deputado quatro vezes e
procurei desenvolver meu trabalho. Em determinado momento senti que a questão
da corrupção tinha um papel fundamental. Me dediquei um pouco ao combate a
corrupção. Fui sub-relator de uma CPI que funcionou, chamada CPI dos Sangue
Sugas, que teve efeito razoável. Mas, a partir do segundo governo do Lula, as
coisas ficaram muito difíceis para se lutar contra a corrupção no Congresso.
Você estava em território minado. Eu senti que era deputado, mas que não
conseguia fazer aquilo que era necessário. Então decidi abandonar e voltar a
minha carreira de jornalista, que gosto muito. Comecei quando garoto e estou
terminando agora.
*O atual cenário político do Rio de Janeiro é desolador. A
Lava Jato e essa crise toda trouxe à tona a precariedade da política carioca. O
Estado tem pouquíssimos quadros qualificados de políticos. O senhor era com certeza um deles, mas não
permaneceu na política. O que acontece no Rio de Janeiro?
O que aconteceu no Rio foi um longo período de dominação do
PMDB. E toda minha atividade eleitoral, independente das propostas da campanha,
era no sentido de derrotar esse grupo, que me parecia bastante problemático
pela corrupção e pela incompetência. Isso não foi realizado porque se vivia, no
momento, uma euforia do petróleo. Havia também muito dinheiro injetado no Rio
de Janeiro através da aliança entre o Lula e o Cabral. A sociedade se deixou
seduzir pela candidatura do Cabral e pelo que propunha, que era muito sedutor:
prosperidade, abundância de dinheiro, algo que interessava muita gente. Todos
participando desse banquete. Então houve uma tendência à vitória dele.
Era muito difícil competir com o Cabral. Além deles terem
muito dinheiro, que vinha da corrupção, tinha também a sedução do crescimento
econômico e um investimento maciço do governo federal aqui. Isso fez com que a
oposição se desarticulasse e, agora, com a queda do Cabral não tem no Rio de
Janeiro nenhuma alternativa para a reconstrução. Eu concordo que há uma
escassez grande de quadros para a transição.
*O descrédito da atividade política e dos políticos dominam
o país como um todo. O que seria, na sua opinião, a tão desejada renovação
política no Brasil? Como chegar lá?
Uma coisa que a prática no Congresso me mostrou é que a
renovação não pode ser apenas a entrada de novos nomes. Porque mesmo que entrem
com boas intenções, depois de um tempo, que nada mudou na estrutura, no
funcionamento do Congresso, as pessoas passam a falar a linguagem dos velhos.
Elas começam a falar o idioma antigo.
É preciso mudar aspectos do funcionamento, do mecanismo para
que a pessoa não seja sufocada ou engolfada pelo tradicional. A renovação nunca
pode ser confiada como uma renovação a partir do zero. Vou te dar um exemplo
cômico. Se tivéssemos 512 deputados novos e mais o Eduardo Cunha eleito, era
capaz dele enrolar todos e dirigir o Congresso durante muito tempo, com os
mecanismos e as coisas que existem lá. Então é fundamental que exista uma
preocupação mais articulada de se apoiar pessoas que passaram pelo Congresso,
dispostas a renovar, mas que não tiveram oportunidade de fazer isso no mandato.
Elas podem transmitir essa experiência, que ajudaria a conduzir um outro
caminho lá dentro.
*É preciso fazer um redesenho institucional?
O redesenho institucional implica uma coisa muito ampla, que
talvez a gente não possa fazer. Deve haver uma série de medidas e caminhos a
ser conquistada em associação com esse grupo renovador. Um grupo que se salva
no Congresso e a sociedade. O foro privilegiado é uma das metas. Acabar com o
foro privilegiado e outros fatores que podem contribuir um pouco para controlar
a corrupção.
Outra coisa que minha presença lá dentro ensinou é que um
grupo articulado de renovadores, em contato e permanente debate com a
sociedade, tem poder de conquistar muitas coisas. Nós tivemos dificuldade para
garantir o voto aberto nas cassações de mandatos. Quando essa questão foi
colocada houve um grande empenho da sociedade para que o voto aberto fosse
adotado. E levamos isso a voto aberto e a votação foi quase maciça. Então cada
vez que você consegue colocar um tema na agenda e envolver a sociedade, a
pressão sobre o Congresso é grande, e você pode obter algumas vitórias. Isso dá
mais poder à sociedade dentro do próprio Congresso.
*Em maio de 2018, como o senhor enxerga o futuro do Brasil?
Eu não enxergo claramente o futuro do Brasil. Mas, o Brasil
avança em vários campos. Em termos econômicos estamos vivenciando uma
recuperação econômica. Acho que o Brasil pode recuperar a importância econômica
que estava adquirindo inclusive no mundo. Podemos reconstruir o sistema
político partidário, que tenha o mínimo de respeito e integração com a
sociedade. No campo cultural, espero um Brasil criativo, reverente com todas as
suas características.
O Brasil não acabou. Não estou esperando um Brasil, porque o
Brasil está aqui. E existem muitas coisas no Brasil, que me apoio em termos de
esperança. Uma delas é o potencial de nossa riqueza natural. É claro que o
processo de destruição ambiental traz preocupação. Mas, podemos esperar que
exista, cada vez mais no Brasil, uma consciência de preservação do meio
ambiente. Eu espero um Brasil mais sustentável e consciente da importância das
suas riquezas naturais.
Agora vou te confessar a última coisa. É isso que espero,
mas já esperei coisas e nem todas as coisas que esperei se realizaram. Tudo vai
depender de combinar com os russos.
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