quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

“Pawn Sacrifice”

Eu não sei se alguém viu o filme  “Pawn Sacrifice” (sacrifício de peão), aqui no Brasil com o infeliz título de  “O dono do jogo”. Eu assisti e gostei muito, mas aviso aos navegantes: não sei avaliar se é um filme exclusivamente para quem gosta de xadrez, mas acrescento que ele não é de difícil entendimento para o leigo.

Trata-se de um quase documentário sobre a vida de Bobby Fischer, um dos maiores enxadristas que já houve. Na maior parte, o filme foca o embate entre ele e Boris Spassky pelo título mundial em Reykjavik, capital da Islândia, em 1972, mas mostra, ainda que de forma acelerada, a sua infância e juventude.

Filho de pais separados (mãe suíça e pai alemão) Robert James Fischer nasceu em 9 de março de 1943 na cidade de Chicago e aprendeu os primeiros movimentos do jogo com sua irmã mais velha Joan. Em 1956, aos 13 anos, teve sua primeira grande participação no Campeonato Norte-Americano de Xadrez para Amadores, conseguindo a 11ª colocação entre 88 inscritos, nada de mais, mas esse foi apenas o primeiro passo. Daí em diante, dos 13 aos 14 anos conquistou os três maiores torneios dos EUA e tornou-se o cara a ser batido, apesar da pouca idade. No Interzonal de 1958, seu primeiro grande torneio internacional, o quinto lugar obtido o levou ao Torneio de Candidatos de 1958 e ao título de Grande Mestre Internacional, o que o credenciou para disputar o Torneio de Candidatos (ao título mundial), quando foi arrasado pelo russo Mikhail Tal por 4-0.

Daí em diante, foram séries de vitórias, principalmente contra os russos, que dominavam o xadrez não só pelo talento indiscutível dos seus jogadores, mas também pelas suas tramóias, entre elas a vergonhosa e escancarada  combinação resultados de partidas entre eles.

Fischer, ao terminar em quarto lugar no Torneio de Candidatos de Curaçao em 1962, descobriu as mutretas do  “exército” soviético - Geller, Petrosian, Korchnoi e Tal - e os acusou de jogarem em equipe para favorecerem uns aos outros, o que foi de fácil comprovação pelo grande número de empates entre eles, sendo que, no final, Korchnoi perdeu três vezes seguidas para seus camaradas, para dar a vitória a Petrosian. A denúncia foi comprovada pela Organização Mundial de Xadrez (FIDE), que, a partir daí, modificou as regras da disputa: em vez de torneios, a habilitação à disputa do título mundial passou a ser jogada em matches individuais eliminatórios.

O filme mostra isso e termina focando o embate entre Fischer e Spassky pelo título mundial em Reykjavik. Nem tanto pelo resultado - uma óbvia vitória do americano - o desenrolar do match é surpreendente pelo verdadeiro pandemônio causado pelas exigências e reclamações de Fischer, já absolutamente tomado pela paranoia anti-soviética.

Para começar, às vésperas da cerimônia de abertura do match que estava marcada para o dia 1º de julho de 1972, Bobby, ciente do seu protagonismo, exigiu que 30% das receitas de bilheteria fossem repassados ao vencedor, exigência não aceita pela organização. Isso, além dos prêmios acordados de US$ 125.000 e 30% das receitas dos direitos de televisão e cinema (5/8 para o vencedor, 3/8 para o perdedor).

Detalhe: Bobby ainda estava nos Estados Unidos.

A cerimônia foi realizada sem a presença de Fischer. Faltando apenas 10 horas para a primeira partida o paradeiro do campeão americano era um mistério. Faltando cinco horas, em vista do não pronunciamento de Bobby, o presidente da FIDE, Max Euwe, anunciou que adiaria em 48 horas o início do match. No dia 3 de julho não havia qualquer sinal de que Bobby jogaria. No entanto, neste mesmo dia, além de ter recebido um telefonema de Henry Kissinger, o doidinho ganancioso aceitou uma oferta - só para ele - de US$ 125.000 do banqueiro londrino James Slater. “Convencido” assim, que deveria jogar, Fischer embarcou imediatamente para a Islândia, lá chegando no dia 4.

Confusão resolvida, as consequências do atraso de Bobby provocaram um novo adiamento do match em função das reclamações da federação soviética, que a FIDE conseguiu contornar. Finalmente, às 18:05h de 11 de julho de 1972, com atraso de 5 minutos por parte de Bobby, o match do século começou.

Para mais, façam o download do “Pawn Sacrifice”. Vale a pena (parece que tem no Netflix também).


12 comentários:

  1. Belo artigo, faltou apenas mencionar que o Bobby Fischer recusou milhões em patrocínio e que a paranoia não era apenas com os soviéticos, ele também tinha paranoia em relação aos judeus, embora ele próprio era judeu de nascimento. Tudo indica que foi a paranoia com os judeus que fez ele recusar os milhões dos patrocinadores. O vídeo do "Dono do Jogo" está disponível no Youtube.

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  2. Não faltou, é que eu me ative ao filme. Tenho um outro artigo semi pronto sobre ele que vou soltar em breve.

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    1. Você é enxadrista, Ricardo?

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    2. Nas horas vagas, George. Jogo blitz de dez minutos na internet, mas virei um pelanca. Esqueci as aberturas - que é meio que decoreba - e o meio de jogo anda pobre. Lá por 1970/74 joguei alguns campeonatos universitários, inclusive o brasileiro, pela UFRJ, mas o que estudei, à época, esqueci.

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    3. Decorar variantes de aberturas é um porre mesmo... hehe
      Aprecia os jogadores posicionais (Capablanca, Botvinnik, Karpov...) ou os táticos (Chigorin, Alekhine, Tal...) ?

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    4. Para ser sincero, não posso avaliar - nem me lembro - muito bem, mas como sempre tentei ser agressivo, Alekhine talvez seja meu preferido. Detesto Petrossian, por exemplo, com seu jogo morrinha de priorizar os empates.

      Gosto muito do jogo do Mequinho, mas sou suspeito: fui amigo e "secretário" dele durante um bom tempo, até que, apesar dos meus avisos, ele se juntou a um empresário argentino picareta que acabou por roubar o pouco que ele tinha - até o apartamento onde morava, na Farme de Amoedo, em Ipanema. Depois disso ele, que já não batia muito bem da bola, pirou de vez e cismou que estava com miastenia gravis - doença incurável - e apareceram mais aproveitadores, como o pessoal de uma tal Renovação Carismática que o "curou" da doença inexistente através de rezas. Daí para Mequinho virar padre foi um pulo.

      Embora Mequinho, que morava sozinho, estivesse sempre lá em casa - mesmo quando eu não estava ele conversava muito com meus pais - eu nunca consegui aprender nada de xadrez com ele. Jogamos duas partidas apenas, uma durou 9 lances e a outra 17. Nem mesmo quando ele estudava as partidas dos torneios recentes, que ele recebia semanalmente através de publicações russas, era possível acompanhar o cara, tal a velocidade com que ele movia as peças no tabuleiro.

      Curiosidades...

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  3. Nossa, muito interessantes essa reminiscências suas sobre o Mequinho! Sempre achei a "cura" repentina dele um tanto estranha, em se tratando de uma doença de tamanha gravidade como a mistenia... De fato, alguns dos melhores enxadristas são bastante excêntricos, vide Morphy, Steinitz, Nimzowitsch, Fischer....Continue publicando mais artigos sobre xadrez. Um abraço, Ricardo!

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    1. Esqueceu Alekhine que, ao chegar no palco para dar uma simultânea e ser recebido friamente, com poucas palmas, botou o pinto pra fora, mijou, virou as costas e saiu.

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  4. Uma experiência muito interessante na área de inteligência artificial realizou desafio entre AlphaZero (do Google) vs Stockfish 8, onde o AlphaZero venceu por 100 x 0. As regras desse desafio foram muito interessantes, os programas não podiam usar banco de dados sobre aberturas e variantes, apenas as regras do jogo foram informadas. Cada programa teve 4 horas para aprender a jogar. Durante a partida, cada movimento deveria ser feito em no máximo 1 minuto. A primeira partida está disponível e comentada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Un90fOWZBhE

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  5. Ricardo, encontrei esse vídeo ontem (sugestão do Youtube), como o xadrez não é minha praia, talvez você se interesse em fazer uma postagem sobre o Turco. Esse é o cheque-mate mais interessante que eu já vi.

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