terça-feira, 3 de janeiro de 2017

“Graças a Deus!”

Luiz Felipe Pondé

“Graças a Deus!”. Essa frase é muito comum na boca das pessoas comuns. Aquele tipo de pessoa “ignorante” que nunca estudou muito. Aquele tipo desprezado por quase todo intelectual.

Émil Cioran (1991-1995), filósofo romeno, dizia que o povo simples da Romênia sabia de tudo. Tudo que ele teve que descobrir depois de muito estudo, insônia e sofrimento. Sua mãe, uma sábia segundo ele, sempre soube que o destino paira sobre todos nós sem nunca ter lido uma linha de filosofia. “O que sei aos 60 sabia aos 20, 40 longos anos de um trabalho inútil de verificação”, dizia nosso trágico romeno.

Soren Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês, dizia que “só espíritos confusos julgam as pessoas pelos livros que leram”. Essa frase deveria ser posta na parede de cada departamento de ciências humanas no mundo.

Blaise Pascal (1623-1662), filósofo, matemático, cientista e teólogo francês, dizia que os verdadeiros sábios descobriam aquilo que as pessoas comuns sabiam de modo intuitivo a vida inteira e que os falsos sábios (“demi-sevant” nas suas palavras) eram aqueles que acreditavam em suas próprias pequenas e equivocadas teorias.

O que há de comum nesses três casos? Os três reconhecem a validade da sabedoria do homem e da mulher comuns. E o que isso tem a ver com a expressão “Graças a Deus”? Esta expressão é pura sabedoria, nada tem de ingênua. Vejamos.

Sei que inteligentinhos (confesso aqui que minha inspiração para esse conceito antropológico de “inteligentinho” é o “demi-savant” de Pascal citado acima) entendem essa frase como uma marca de gente crente, alienada, ignorante, que serve de massa de manobra para ministros religiosos picaretas de todos os tipos.

E aqui fica clara a condição inteligentinha: ele, realmente, pensa que sacou tudo sobre religião quando diz isso (quando isso é, apenas, uma pequena parte do que religião é de fato). Mas, um inteligentinho nunca entende nada porque leva muito a sério sua dissertação de mestrado. Religião é coisa muito mais séria do que pensa nosso vão ateísmo de butique.

Ouçamos um outro grande intelectual romeno, Mircea Eliade (1907-1986), fundador da história comparada das religiões. Eliade dizia que uma das raízes das religiões é o “terror da contingência”, aquele sentimento ancestral de que o acaso (sinônimo de contingência) domina nossa vida sem dó. As religiões seriam formas de lidar, compreender e dar significado a este sentimento esmagador de que a contingência age o tempo todo sobre nós.

Pois bem, quando uma pessoa comum diz “graças a Deus”, ela não está manifestando sua idiotice atávica (apesar de que também se pode entender assim, mas será um entendimento inteligentinho), ela está manifestando um profundo entendimento da nossa relação com a contingência e os modos simbólicos de acolhê-la em nossas frágeis vidas.

“Deus” aqui (para além do cristianismo de fundo que organiza nossa forma de compreensão da ação da contingência no Ocidente) é essa gigantesca contingência que tudo decide, uma vez que nunca teremos controle absoluto sobre as variáveis em jogo na vida de cada um de nós.

No judaísmo deve-se ler o livro do “Eclesiastes” (o livro que fala que tudo é vaidade, vento que passa...) da Bíblia Hebraica sempre que a colheita for boa e que tivermos sucesso em nossas vidas, para lembrarmos que se tivemos sucesso é porque Deus assim o quis.

Martinho Lutero (1483-1546), teólogo fundador do protestantismo, dizia que o “Eclesiastes” é um livro sobre a graça, ou seja, a livre vontade de Deus, fora de nosso controle.

Pois bem. Voltemos as pessoas comuns. “Graças a Deus”, reconhecimento intuitivo do fato de que estamos nas mãos da contingência incontrolável e que, por isso mesmo, devemos “agradecer” a ela tudo de bom que (por sorte) nos acontece, está em profunda consonância com a sabedoria israelita antiga e com Eliade e Lutero.

“Graças a Deus” é uma profunda forma de reconhecimento da frágil beleza da vida, e uma confissão de humildade que é, sempre, uma forma dessa mesma beleza. Bom ano pra você.

5 comentários:

  1. Está óbvio que o Pondé não se coloca entre os "inteligentinhos", mas não há como identificar se ele se coloca entre as "pessoas comuns". Eu suponho que "pessoas comuns" não ficam inventando conceitos como o de "inteligentinhos", então fica o mistério sobre em qual grupo o Sr. Pondé se colocaria.

    “Religião é coisa muito mais séria do que pensa nosso vão ateísmo de butique”. Neste ponto concordo plenamente com o Pondé, mas vou além, digo que é mais sério, mais perverso e mais perigoso do que imaginam os “não inteligentinhos” (conceito que precisei inventar para poder identificar o grupo ao qual pertence o Pondé), começando pelo fato de que religião não tem nenhuma relação com deus, deuses, divindades ou espiritualidade, mas para que ela funcione é necessário um pobre diabo para levar a culpa, esse tal de deus.

    Ao contrario do que ensinam às pessoas comuns e às não comuns também, a palavra religião não vem do latim “religare”, que significaria religar e daria à palavra religião o sentido de religar o homem a Deus. A palavra religião tem origem da palavra “religio”, que em latim significa reverência ou respeito. “Em sua origem latina, "religião" não é palavra religiosa, não remete ao transcendente, como quando falamos do ponto de vista do cristianismo, do judaísmo ou do islamismo. A religio romana referia-se à atitude de reverência que um cidadão romano tinha pelas instituições do Império” (Gabriel Perissé).


    Não vou apresentar uma dissertação sobre religião, mas não posso deixar de mencionar que o imperador Constantino usou o cristianismo para fazerem as pessoas adorarem o Império Romano, adorassem o imperador e até hoje, é assim, só que o império romano foi substituído por outras instituições e outras crenças também passaram a ser usadas como religião.

    Não tenho nenhum filósofo romeno para citar, então vou apelar para o Sócrates: só existe um bem, o conhecimento, só existe um mal, a ignorância.

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  2. Desculpe, mas religião, etimologicamente, tem e muito a ver com transcendência e misticismo sim.

    Religião

    C. 1200, “estado de vida vinculado por votos monásticos”, também “conduta indicando uma crença em um poder divino”, de religião anglo-francesa (11c.),

    Religião francesa antiga: “piedade, devoção, comunidade religiosa”

    Diretamente do latim religio, “o respeito pelo que é sagrado, a reverência pelos deuses, a consciência, o senso de direito, a obrigação moral, o temor dos deuses, o serviço divino, a observância religiosa, uma religião, uma fé, um modo de culto, Santidade”

    No latim tardio “vida monástica” (5c).

    De acordo com Cícero derivado do relegere, “repassar” (na leitura ou no pensamento);

    A etimologia popular entre os tardios anciãos (Servius, Lactâncio, Agostinho) e a interpretação de muitos escritores modernos a conectam com o religare “para ligar rápido”, através da noção de “colocar uma obrigação sobre”, ou “vínculo entre Humanos e deuses”.

    Outra possível origem é religiens “cuidadosa”, o contrário de negligens. Em inglês, que significa “sistema particular de fé” é registrado a partir de c. 1300; Sentido de “reconhecimento e lealdade na forma de vida (percebida como justamente devido) a um poder superior, invisível ou poderes” a partir de 1530.

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    1. O uso que foi feito da palavra religião, é sem dúvida no sentido místico, mas na prática continua sendo igual ao sentido usado por Constantino, ou seja, através da reverência a um deus, reverencia-se uma instituição e, seu imperador. Lembre-se que Constantino nunca se converteu ao cristianismo. Apenas para mostrar que minha argumentação não é apenas uma interpretação pessoal, vou lembrar que as pessoas que mantém relação com o místico, sem estar ligados à uma instituição, são denominadas de "sem religião".

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  3. Outra coisa: Pondé não está fazendo uma reflexão sobre si mesmo, portanto ele não precisa se "colocar" entre os inteligentinhos e nem entre as pessoas comuns.

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    1. Evidentemente que a reflexão não era sobre ele mesmo, ele nem mesmo estava fazendo uma reflexão, estava emitindo julgamento. A questão é justamente essa, ele julga tomando a si mesmo como referência, mas não identifica a si mesmo.

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