Por Mayukh
Sen
Em agosto de 2013, um pouco antes do 65º Dia da
Independência da Índia, a Outlook India, uma das revistas de maior circulação
do país, publicou os resultados de uma pesquisa conduzida entre seus leitores.
Quem, depois do “Mahatma”, era o maior indiano que já viveu? O Mahatma no
centro dessa pergunta puxa-saco era, claro, Mohandas Karamchand Gandhi.
Não é surpresa ver a Outlook colocando sua suposição como
uma verdade. Gandhi se tornou o barômetro óbvio da grandeza indiana, se não da
grandeza em geral. Afinal de contas, quem não gosta do Gandhi? Ele ficou
conhecido como esse idoso frágil e nobre, com uma alma pura, moral e piedosa.
Ele foi o cara que introduziu a gramática de resistência não violenta na Índia,
um país que ele ajudou a escapar do comando imperial britânico. Ele fez greves
de fome valentes até que um nacionalista hindu o matou, efetivamente o tornando
um mártir.
Meu avô por parte de mãe foi para a cadeia com Gandhi em
1933; então, cresci sabendo que o mito estava remendado com meias-verdades. Meu
avô levou as lições que aprendeu na cadeia para começar um ashram nas entranhas
da Bengala Ocidental. Como consequência, me criaram com uma compreensão íntima
de Gandhi que oscilava entre laudatória e crítica. Minha família o adorava,
apesar de nunca acreditar na ideia de que ele orquestrou sozinho o movimento de
independência da Índia. O fanatismo de Gandhi nunca era mencionado em nossa
casa. Nas décadas seguintes ao assassinato dele, em 1948, a imagem de Gandhi
foi construída cuidadosamente, limpa de todos os detalhes sujos, e assim fica
fácil esquecer sua retórica racista, sua alergia veemente à sexualidade
feminina e sua pouca vontade em ajudar a libertar a casta dalit, ou os “intocáveis”.
Gandhi morou na África do Sul por mais de duas décadas, de
1893 a 1914, trabalhando como advogado e lutando pelos direitos dos indianos –
e só dos indianos. Como ele expressava abertamente, os sul-africanos negros
praticamente não eram humanos para ele. Gandhi se referia a eles usando a
expressão depreciativa kaffir. Ele lamentava que os indianos fossem
considerados “um pouco melhores que os selvagens ou os nativos da África”. Em
1903, ele declarou que a “raça branca na África do Sul deveria ser a raça
predominante”. Quando foi mandado para a cadeia em 1908, ele detestou o fato de
que os indianos eram colocados com os prisioneiros negros, não os brancos.
Alguns ativistas sul-africanos têm colocado essa parte da história de Gandhi
sob os holofotes novamente, assim como um livro publicado em setembro passado
por dois acadêmicos sul-africanos, embora isso sequer tenha gerado arranhões na
consciência cultural ocidental além dos círculos concêntricos do Tumblr.
Por volta da mesma época, Gandhi começou a cultivar a
misoginia que carregaria para o resto da vida. Durante seus anos na África do
Sul, uma vez ele respondeu ao abuso sexual de duas de suas seguidoras as
obrigando a cortar os cabelos para ter certeza de que elas não atrairiam mais
atenção sexual. (Michael Connellan, escrevendo para o Guardian, explicou
cuidadosamente que Gandhi achava que as mulheres entregavam sua humanidade no
minuto em que eram estupradas.) Ele acreditava que os homens não podiam
controlar seus instintos predatórios e que as mulheres eram responsáveis – e
estavam completamente à mercê – desses impulsos. Suas visões sobre a
sexualidade feminina eram similarmente deploráveis; segundo Rita Banerji,
autora de Sex and Power, Gandhi achava que menstruação era “a manifestação da
distorção da alma da mulher por sua sexualidade”. Ele também acreditava que
contraceptivos eram um sinal de devassidão.
Ele confrontou essa incapacidade de controlar a libido
masculina quando decidiu ser celibatário (sem discutir isso com a esposa) na
Índia, usando mulheres – inclusive meninas menores de idade, como sua
sobrinha-neta – para testar sua paciência sexual. Ele dormia nu com elas na
cama sem as tocar, se certificando de não ficar excitado – as mulheres eram
adereços de seu celibato.
“É fácil esquecer a retórica racista de Gandhi, sua alergia
veemente à sexualidade feminina e sua pouca vontade em ajudar a libertar a
casta dalit, ou os 'intocáveis'.”
Kasturba, a esposa de Gandhi, era seu maior saco de
pancadas. “Simplesmente não consigo olhar para o rosto de Ba”, ele disse uma
vez sobre ela depois de Kasturba ter cuidado dele quando Gandhi ficou doente. “A
expressão geralmente é como a da cara de uma vaca mansa, e ela me dá a mesma
sensação que as vacas geralmente dão: de que de seu jeito idiota, ela está
dizendo alguma coisa.” Alguém poderia dar a desculpa de que as vacas são
sagradas no hinduísmo – ou seja, chamar a esposa de vaca seria um elogio
velado. Ou, talvez, ele só quisesse acabar com esse aborrecimento marital.
Quando Kasturba teve pneumonia, Gandhi não deixou que ela recebesse penicilina,
mesmo quando os médicos disseram que isso a poderia curar: ele insistiu que o
novo medicamento era uma substância estranha que o corpo dela rejeitaria. Ela
morreu da doença em 1944. Alguns anos depois, talvez percebendo seu erro, ele
voluntariamente tomou quinino para tratar a própria malária. Ele sobreviveu.
Há o impulso ocidental de ver Gandhi como o discreto
aniquilador das castas, uma caracterização que é categoricamente falsa. Ele via
a emancipação dos dalits como um objetivo inalcançável e achava que eles não
mereciam um eleitorado separado. Ele insistia que os dalits continuassem
complacentes, esperando por uma virada que a história nunca proporcionou. Os
dalits continuam sofrendo com os preconceitos emaranhados ao tecido cultural da
Índia.
A história, como Arundhati Roy escreveu no ano passado no
ensaio seminal “The Doctor and the Saint”, tem sido incrivelmente gentil com
Gandhi. Isso deu espaço para apresentar seus preconceitos como meras
imperfeições, pequenas marcas em mãos limpas. Apologistas vão insistir que
Gandhi era apenas humano. Eles vão tentar metamorfosear os preconceitos dele em
algo positivo, provas de que ele era como nós. Outro tipo de deserção
histórica: o argumento de que iluminar os preconceitos de Gandhi demonstra como
os americanos nutrem um fascínio doentio pelos problemas da Índia, como se os
escritores ocidentais estivessem obcecados em concatenar problemas sociais para
o subcontinente do nada.
Essa é a ginástica mental que fazemos quando estamos
ansiosos em criar uma mitologia. As características péssimas que Gandhi exibia
persistem na sociedade indiana hoje – ataques virulentos aos negros, um
desrespeito blasé para com o corpo das mulheres, uma miopia cuidadosa diante do
tratamento aos dalits. E não é coincidência que essas mesmas características da
retórica da Gandhi tenham sido riscadas de seu legado.
Mas como você responde a uma alcunha ridícula como “o maior
indiano”? Esse é um peso colossal para colocar sobre qualquer um: dizer que ele
é a pessoa a se saudar num país com bilhões de pessoas. Criar um falso ídolo
envolve muito esquecimento. É fácil babar sobre um homem que nunca existiu de
verdade.
Este artigo apareceu originalmente no Broadly.
(Magu) Isso me parece boa imprensa. Desnudar os véus que encobrem parte da personalidade de figuras públicas, mas sem querer destruir os pés dos ídolos, apenas mostrando que também eles tem os pés de barro...
ResponderExcluirEsse equívoco é recorrente na história da humanidade, confundir a obra com o autor. No caso do Gandhi é bem explícito, as pessoas são induzidas no sentido de admirar o indivíduo sem buscar conhecimento sobre a obra. A obra de Gandhi foi política, é centrada na desobediência civil, a não violência surgiu como complemento, mas vendem a ideia de não violência como base do movimento político.
ResponderExcluirTrazer à tona os fatos que derrubam o mito, sem dúvida é necessário, mas também está sendo feito sem a distinção entre a obra política e a vida pessoal do Gandhi. Resumindo, as pessoas são induzidas a seguir ou contestar o indivíduo quando deveriam seguir ou contestar a desobediência civil.
Eu sempre desconfiei de gente com fama de muito bonzinho, "Nobeis" da Paz e outras coisinhas.
ResponderExcluirTaí Gandhi desmitificado, tal como Madre Teresa de Calcutá. Hoje foi Mandela, no Globo, e sem contar com o Santos, presidente da Colômbia, que se rendeu às FARC.
Bando de gente submissa e covarde que os arautos dos direitos humanos querem nos fazer engolir como se fossem virtuosos.
Aliás, sobre Gandhi, eu tenho algumas outras coisas em livros e arquivos nada alvissareiras. Vou catar aqui e fazer um resumo.
ResponderExcluirEsse tema deveria ser estudado com mais responsabilidade, lamentavelmente está dividido entre os que santificam e os que satanizam, sem distinguir a obra do autor. A independência da Índia, bem como a desobediência civil como método, não devem ser confundidos com a santidade ou perversidade do Gandhi. Isso acontece com muitas personalidades históricas, inclusive com Lincoln, mas o exemplo mais interessante é John Lennon, que é considerado de esquerda por suas manifestações contra a Guerra do Vietnam, ao mesmo tempo que Nixon é considerado de direita, mas se elegeu duas vezes tendo justamente como bandeira principal, o discurso contra a mesma guerra.
ResponderExcluirNão há irresponsabilidade nenhuma em publicar detalhes da vida de um mito. Já falei aqui sobre os porres de Churchill e nem por isso deixei de admirá-lo.
ResponderExcluirDizer algumas verdades sobre certas personalidades ajuda a desmitificá-las e a provar que não são deuses, além de colaborar para que seus seguidores pensem duas vezes antes de criar novas historinhas mentirosas louvando seus ídolos, que são, antes de tudo, humanos e pecadores como eles.
Quando falo em estudar com mais responsabilidade, estou me referindo aos "estudiosos" formais, não tem nada a ver com publicar detalhes. Quando digo que falta responsabilidade, me refiro aos dois lados, um que só procura mostrar uma santo e outro que só procura mostrar um demônio.
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