Por Fernando Luís Schüler, Doutor em Filosofia (UFRGS),
professor do Insper e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento
Muito bom artigo que, embora longo, merece ser lido.
Época
“No futuro, todos que
não forem partidários de Fidel, serão acusados de imoralidade”, escreveu o
cronista Miguel Bauza, em um artigo publicado no jornal Bohemia, em dezembro de
1955. À época, Fidel achava-se na cidade do México, preparando o desembarque
guerrilheiro na Ilha, e ainda havia imprensa circulando livremente pela Ilha de
Cuba.
Não demorou muito para que a profecia de Bauza se fizesse
história. Milhares de histórias. Uma delas foi a de Mario Chanes, morto em
2007, no exílio. Mário desembarcou com Fidel Castro, a bordo do Gramna, e lutou
na Sierra Maestra. Acreditava na promessa de uma democracia para Cuba. Ainda em
1959, divergiu dos rumos da revolução, foi condenado e encarcerado por 31 anos,
tornando-se o preso político mais longevo do mundo. Outra foi a história de
Pedro Boitel, a jovem promessa da revolução, que em 1960 ousou se candidatar a
uma posição na federação universitária de Cuba, contra a orientação de Castro.
Encarcerado, condenado a 30 anos de prisão, morreu em 1971, depois de uma greve
de fome de 53 dias, com a mãe, antiga conhecida de Fidel, em vigília ao lado do
presídio de Castilho del Príncipe, em Havana. Pedro e Mário não cometeram crime
algum. Eram mesmo revolucionários de primeira hora. Mas cometeram, como muitos
cubanos, nestes 58 anos, o grande pecado, anunciado por Bauza.
Castro chega ao poder no ano novo de 1959, e lá permanece
até sua morte, ocorrida na noite de sexta-feira (25), segundo informou seu
irmão e atual dirigente de Cuba, Raúl Castro em pronunciamento em cadeia
nacional. Formalmente, deixou a função de Presidente de Cuba e Chefe das Forças
Armadas em 2006, mas manteve o poder em família, até o fim, com seu fidelíssimo
irmão. Em qualquer conta que se faça, Fidel foi o mais longevo ditador da era
contemporânea, superando mesmo o norte-coreano Kim Il-Sung, que permaneceu por
46 anos no poder. Há algumas unanimidades nos juízos que sobre ele se fazem: a
obsessão quase doentia pelo poder, a autoconfiança quase mística, o carisma. Há
também controvérsias. A maior de todas seguramente é sobre como foi possível
preservar um regime socialista ortodoxo durante todo este tempo, muito além da
dissolução do bloco soviético. Há muitas respostas. Carlos Alberto Montaner
possivelmente exagere quando diz: pelas mesmas razões que a ditadura da família
Kim permanece no poder, na Coreia do Norte. Há algo que ver com isto. Há o
aparato repressivo, o sistema do medo, é certo. Mas seguramente o tema é mais
complexo. Os historiadores terão, doravante, tempo e material suficiente para
desvendar o mistério.
Fidel é filho de Angel Castro, imigrante galego chegado a
Cuba em 1898. Angel foi um self made man cubano. De cortador de Cana,
trabalhando para a United Fruit Company, terminou seus dias como um grande
proprietário de terras em Birán, ao norte de Cuba. Foi-se aos 80 anos, poucas
semanas antes do desembarque do filho rebelde na praia Las Coloradas, a bordo
do Gramna. Graças à seu sucesso empresarial, pode oferecer a melhor educação a
Fidel, incluindo os anos de ensino intermediário no Colégio de Belém, de
orientação jesuíta. Instituição devidamente expulsa da Ilha, depois da
revolução.
Angel tentou, durante anos, fazer com que o filho
abandonasse a política, sem sucesso. Fidel ingressa na Universidade de Havana
em 1945, como estudante de Direito, e imediatamente mergulha em um ativismo
político desenfreado. De estatura elevada, exímio orador, ávido por sucesso,
surge como “el caballo”, o bicho das guerras estudantis da Havana dos anos 40.
Ora podemos vê-lo embarcando da tentativa de invasão de Santo Domingo, ora
discursando, com os olhos vidrados, ao lado da estátua Alma Mater, nas
escadarias da Universidade, ora pondo em ação seu faro midiático, como no
translado do sino da independência, o Demajagua, para a Universidade de Havana,
em novembro de 1947, em uma ação espetacular contra o governo do Presidente
Ramon Grau. Data desta época sua conversão ao marxismo.
Na virada dos anos 50, torna-se um revolucionário
profissional. Larga a primeira mulher, Mirta, a viver em um quarto de hotel,
quase sem dinheiro, no centro de Havana, com o filho pequeno. Mirta depois o
abandona. Se casa com um jovem inimigo político de Castro, filho do embaixador
de Cuba na ONU. Fidel não lhe perdoará. Anos depois, literalmente, sequestra o
filho, Fidelito, para viver na casa de amigos, em seu exílio mexicano. No dia
26 de julho de 1953, à frente de um grupo mal preparado de 160 combatentes, dá
efeito a seu gesto mais ousado, com a invasão do Quartel de Moncada. A ação
termina com 61 mortos, é um fiasco, mas serve para transformar Fidel em um
ícone internacional. Recebe um julgamento aberto, e lhe é permitido fazer a
própria defesa. Com menos de dois anos de prisão, é anistiado.
A tomada do poder, em janeiro de 1959, foi sua obra prima
política. Na Sierra Maestra, cria o mito dos “barbudos”, jovens idealistas cujo
único objetivo era a libertação de Cuba do tirano Fulgêncio Batista, a
reconstrução democrática, a convocação de eleições livres. Uma vez no poder,
empossou um presidente fantoche, Manuel Urrutia, e em poucos meses suprimiu
todas as “retrancas” institucionais que poderiam limitar de algum modo seu
poder. Esqueceu-se das eleições, proibiu os partidos políticos, fechou o
parlamento, promoveu um amplo expurgo na Universidade de Havana, fuzilou alguns
milhares de opositores (fala-se em quatro mil, nos três primeiros anos da
revolução, mas as estatísticas são imprecisas). Fechou todos os órgãos de
imprensa independentes, incluindo a tradicional revista Bohemia, a os jornais
Prensa Libre e o Diário de la Marina, este último fundado em 1832. O “método”
era sempre o mesmo: o progrom de estilo fascista, a invasão da redação pela
turba militante, a conivência policial, e logo a fuga dos chefes de redação e
proprietários para alguma embaixada próxima. Foram os anos de ouro do panóptico
sinistro da Ilha de Pinos, o presídio modelo que abrigava, no início dos anos
60, mais de oito mil presos políticos.
No poder, Castro enuncia a equação demiúrgica que lhe
permite prosseguir no comando da Ilha, indefinidamente: “a revolução é a fonte
de todo direito”. A revolução como fonte do poder; o partido, como condutor da
revolução; o “líder máximo”, por sua vez, como condutor do Partido. A fórmula é
banal, usada e abusada pela tradição revolucionária, mas sem dúvida eficiente.
Ao contrário do que ocorre nas democracias constitucionais, em que a
legitimidade é dada pelo sufrágio, e o poder limitado por regras, em um sistema
de pesos e contrapesos, a fonte da legitimidade revolucionária reside na
história. A vitória, em um passado místico, pela força das armas. Vitória que
logo se faz em dobro, quando o exército castrista, já bem munido de armamento
soviético, derrota a tentativa de invasão da Baía dos Porcos, em abril de 1961,
por parte de exilados cubanos mal preparados, com apoio da CIA. A partir daí, a
guerra é contra o “grande império do norte”. Contra o “bloqueio”. O enredo da
Guerra Fria se completa. Ele funciona em todos os arrestos, serve como desculpa
para toda a forma de violência e supressão de quaisquer direitos. Revive dia a
dia, mesmo quando o regime vive seu declínio, como se viu no caso do menino
Elian, em 1994. Quanto ao poder, não obedece a freios. Fidel foi um curioso
personagem hobbesiano, bem sucedido, no que se propôs a fazer. Possivelmente
como nenhum outro líder político do último século.
O Fidel revolucionário segue o figurino clássico. Em
primeiro lugar, é implacável. Desde os campos improvisados de treinamento para
a guerrilha, ainda no México, impõe a obediência absoluta e a prática dos
justiçamentos. Tribunais improvisados, nenhum direito à defesa, a última
palavra com o “comandante”. Soube se cercar de um punhado de jovens dispostos a
tudo, fieis e talentosos. A começar pelo irmão, Raul, precocemente comunista,
tendo muito jovem, ainda antes de Moncada, visitado o bloco soviético; Camilo
Cienfuegos, Célia Sanchéz, Ramiro Valdez, e o mais ortodoxo e violento de
todos, espécie de místico da revolução, Ernesto Guevara. Soube também se livrar
de qualquer um que lhe atravessasse o caminho, o que podia significar a mais
leve oposição. Foi assim com Camilo, morto em um mal explicado acidente aéreo,
ainda no primeiro ano da revolução. Foi o caso emblemático de Huber Matos, o
“professor”, herói da Sierra Maestra, que passaria os vinte primeiros anos da
revolução no presídio da Ilha da Juventude, e depois seguiria a Miami, como
exilado e opositor ao castrismo.
Traço forte da personalidade do “líder máximo” foi, ao longo
da vida, uma incontida aversão ao homosexualismo. Nos anos 60, chegaram a
funcionar na Ilha as UMAP, unidades militares de apoio à produção, espécie de
campos de concentração para o qual eram enviados os suspeitos de
homossexualidade e outras condutas chamadas anti-sociais. À entrada destas
unidades, lia-se a frase: “o trabalho os fará homens”. Em 1970, Allen Ginsberg,
após uma animada e originalmente simpática visita a Cuba, foi expulso da Ilha
após sugerir, em um debate, que uma obsessão como a do “comandante” seria
típica de quem manteve, na juventude, relações homoeróticas. Nos anos 80, como
política de combate à Aids, Castro cria os famigerados sidatorios, campos de reclusão
de pessoas infectadas, inclusive de crianças. O caso mais notório da saga
homofóbica castrista foi a perseguição ao poeta Reinaldo Arenas. Sua história,
de "adolescente fascinado com os barbudos”, até ser preso, a tentativa de
fuga fracassada em uma câmara de ar, a prisão, a confissão forçada, o exílio.
Tudo retratado em Before Night Falls, biografia transformada em filme,
estrelado por Javier Bardem.
Curiosa foi a relação de Fidel com os intelectuais. Avesso
ao livre pensamento, deixou isto claro desde o início do processo
revolucionário. Ainda em 1961, pronuncia o famoso discurso Palabras, na
Biblioteca Nacional de Cuba, diante de uma seleta audiência de escritores,
explicitando sua visão sobre os direitos dos intelectuais cubanos: “dentro de la
revolución, todo; contra la revolución, nada”. Por óbvio, pertencia ao próprio
Fidel a decisão sobre o que significava, a cada momento, estar “dentro” ou
“fora” da revolução. Eufemismos da ideologia. No mesmo ano, ordena o fechamento
do semanário Lunes, dirigido por Cabrera Infante, determina a submissão de
qualquer publicação literária à prévia autorização do Estado, suprime os
direitos autorais e cumpre a risca a promessa de suprimir todos os direitos aos
intelectuais críticos, a começar pelo próprio Cabrera Infante, Virgilio Piñera
e Heberto Padilha, numa infinita lista que vai até os dias de hoje, com
personagens “históricos”, como Wladimiro
Roca e Marta Beatriz Roque, até Reinaldo Escobar e Yoani Sanchez, fundadores,
em 2014, do primeiro jornal eletrônico independente da Cuba pós 1959, o
14medio.com. Tudo isto é bastante conhecido. Curiosa sempre foi a adesão
incondicional ao castrismo, por parte de uma turba de escritores e artistas
latino-americanos. A lista é extensa, incluindo notórios brasileiros, como
Chico Buarque, Oscar Niemeyer e Fernando Morais. Neste campo, ninguém superou o
colombiano Gabriel García Márquez em sua fidelidade ao líder máximo, mesmo nas
horas mais sombrias da ditadura castrista. Razões para isto? Frieza moral?
Fascínio pelo poder, pelos mistérios dos encontros com o ditador irresistível,
em alguma madrugada de Havana? (No caso de García Márquez, uma pequena mansão e
um punhado de mordomias, na Ilha). Talvez. Pensando-se bem, não há nada de mais
nisso. Intelectuais apoiaram o nazismo, o fascismo, o stalinismo. Está para ser
encontrado o criador da lenda de que intelectuais são modelos de retidão moral.
No plano internacional, Fidel nunca deixou dúvidas sobre
quem eram seus aliados. Amigo de longa data do ditador Erich Honecker, da
extinta Alemanha Oriental, a quem chamou de “o alemão mais revolucionário que
já conhecera”; aliado desde sempre de Muammar Gaddafi, que lhe concedeu o
curioso “Al-Gaddafi prize for human righs”; de Saddam Hussein, querido amigo,
que o abastecia regularmente de tâmaras; do ditador genocida Robert Mugabe, do
Zimbabwe. Apoiador do ETA e de dezenas de grupos terroristas, em todo o mundo,
Fidel teve como seu último, e talvez mais espetacular pupilo, o líder
venezuelano Hugo Chávez, de quem foi mestre e íntimo amigo. Um dos inegáveis
predicados de Fidel sempre foi demonstrar, com clareza, de que lado estava e
que tipo de mundo suas ideias projetavam.
Quando sobrevém a perestroika, sintoma da crise terminal do
bloco comunista, nos anos 80, Castro corre na direção contrária. Afunda-se na
ortodoxia mais delirante. Pressente, com clareza, que uma política de abertura
representaria o seu fim. Antecipou o que ocorreria com o Leste europeu. Ao
longo dos anos oitenta, a palavra que mais teme é “solidariedade”. Abomina o
exemplo de Walesa, a ideia de um movimento social reformista ligado à igreja.
Seu inimigo íntimo é Gorbachev, a quem gosta de chamar “porco maricas”. Em
1986, anuncia a política de “retificação de erros” e dá marcha ré qualquer
política de abertura. Proíbe o pequeno negócio, os mercados livres de
camponeses, restringe o trabalho individual, reativa “brigadas de construção”.
O processo levou a ilha à maior crise econômica de sua história, mas permitiu
que Castro escapasse de uma glasnost cubana, ou terminasse seus dias como um
Ceausescu tropical.
No final dos anos 80, patrocina aquele que ficou conhecido
como o último “processo de Moscou”. Em um “tribunal revolucionário” que conduz
pessoalmente, em todos os detalhes, leva ao fuzilamento o General Ochoa,
comandante da guerra de Angola, condecorado como “herói da república de Cuba”,
e que ainda adolescente havia participado da Sierra Maestra. Ochoa era um dos
mais preparados e admirados militares cubanos, simpático à abertura promovida
por Gorbachov, visto como excessivamente independente e um potencial líder para
uma transição na Ilha. Seu maior pecado? O maior de todos, conforme lhe disse,
lacrimoso, Raúl Castro: atacar a Fidel, “nosso paizinho”. Junto com Ochoa, é
também fuzilado Tony de la Guardia, seu braço direito nos “serviços especiais”
e de espionagem durante três décadas. Tony, a quem Gabriel García Márquez
chamou de “aquele que semeia o bem”. O mesmo “Gabo” que assiste ao julgamento,
incógnito, ao lado do “Comandante”, entre amedrontrado e fascinado com aquela
Macondo superlativa.
Fidel teve diversas oportunidades de conduzir, ele mesmo, a
transição de Cuba para a democracia. Uma delas no processo da perestroika.
Outra foi no final dos anos 90, com a visita do Papa João Paulo II, o apoio de
líderes da social-democracia europeia, como Felipe Gonzalez, o Projeto Varela,
desenhado pelo opositor pacífico e moderado Oswaldo Payá, a boa vontade
mediadora do ex presidente Carter. Foi recebido pelo Presidente Miterrand, no
Eliseu, em 1995. Contou com o entusiasmo da primeira-dama francesa, Danielle
Mitterand, que chegou a enviar a Cuba uma imprudente missão de sua France Liberté, na expectativa de que a abertura
de Cuba se faria com a “mão estendida” a Fidel.
A tudo isto, Castro respondeu com seu jogo duplo. Em En toutes libertés,
lê-se a carta desencantada de Danielle: “não vou conseguir convencer mais
ninguém que esteja contra você, Fidel, se os seus atos e palavras são tão
divergentes...Sou corajosa, talvez temerária, mas não imprudente”. O projeto
Varela foi esquecido, e Cuba tornou-se o curioso caso de um país a espera da
morte do velho ditador para fazer sua transição. Oswaldo Payá, talvez a melhor
pessoa para a conduzir, foi morto em um acidente rodoviário, até hoje não
explicado, em um domingo de julho de 2012.
Ainda em 2003, três anos antes de deixar que o irmão
assumisse a chefia do governo, Fidel leva a efeito aquela que ficou conhecida
como a Primavera Negra de Cuba. Na madrugada de 18 de março, 75 ativistas de
direitos humanos, metade dos quais ligados ao Projeto Varela, foram presos e
logo condenados, em processos sumários, a penas que variavam de 6 a 30 anos de
prisão. Dentre os presos, 29 eram jornalistas independentes, o que fez de Cuba,
ao longo da primeira década do século, o País com mais jornalistas presos por
delito de opinião. A Primavera Negra produziu, para o regime, um resultado
inesperado: o surgimento das Damas de Blanco. São as esposas e mães dos
ativistas presos, que caminham, silenciosas, a cada domingo, pelas ruas de
Cuba, vestidas de branco e segurando nas mãos, como num apelo ao bom senso,
suas palmas de santa rita.
Em julho de 2006, Fidel anuncia seu afastamento das funções
de governo e transmite o poder ao irmão Raul. Faz uma transição em família. Dá
mostras da natureza pessoal de seu poder, e assim o preservou até a morte.
Gasta seus últimos anos redigindo artigos, de quando em quando, para o Gramna,
navegando na internet e recebendo uma romaria de políticos, entre velhos amigos
e novatos em busca de um bom selfie.
Em 2014, Juan Reinaldo Sánchez publicou o A vida secreta de
Fidel Castro. Livro simples, mesmo banal, mas que causou estragos como poucos o
fizeram, na imagem pessoal de Castro. Sanchez, tenente coronel do exército
cubano, integrou a guarda pessoal de Fidel por 17 anos, e posteriormente
conseguiu escapar da Ilha, como um balseiro. Através dele, ficamos sabendo que
Fidel vivia como perfeito ditador cucaracha, bebendo seu Chivas Regal, em sua
ilhota particular, Cayo Piedra, em meio a uma população sob o regime da libreta
e do racionamento. Além dos aspectos pitorescos, Sanchez trata do envolvimento
de Fidel com o tráfico de drogas, da tortura como prática comum na Ilha, do
absurdo do caso Ochoa. Em especial, oferece um testemunho patético do sistema
de poder absoluto criado por Castro. “Cuba é “coisa” de Fidel”, observa. Com
poder de vida e de morte sobre qualquer um, a qualquer pretexto, ele é “seu
dono, à maneira de um proprietário de terras do século XIX”. Definição
sugestiva para uma regime comunista.
Em março de 2016, Barack Obama visitou Cuba para selar o
acordo de reaproximação dos Estados Unidos com a Ilha. Obama justificou sua
atitude dizendo que “era preciso mudar uma política que não funcionou nos
últimos 50 anos”. Em uma terça-feira quente de Havana, dia 22, via-se o
presidente americano no Gran Teatro Alicia Alonso falando sobre “esquecer o
passado”, sobre “valores universais como liberdade religiosa e sobre escolher
seus líderes”. Obama agiu unilateralmente. Reabriu a embaixada americana e
flexibilizou a visita de americanos à Ilha. Cuba não concedeu nada em termos de
direitos humanos. Fidel se manteve quieto. Percebeu o momento para o que seria
sua última encenação: ao invés de reconhecer o gesto de Obama, disse não
confiar e não precisar do “império”. Insinuou que faltava conhecimento
histórico ao presidente americano e que os cubanos poderiam ter um infarto
escutando suas palavras melosas. Na última cena, a grande inversão: ao invés de
“sua” ditadura ser cobrada por abertura e direitos humanos, são os Estados
Unidos que surgem “julgados” pelo seu passado. El Caballo, o ilusionista,
continuou em forma até o fim.
Será necessário ainda muito tempo e pesquisa para se saber
ao certo o saldo de vítimas do castrismo. O Projeto Cubaarchive.org tem feito um
trabalho notável, e pode ser uma boa fonte de informação. O historiador francês
Pascal Fontaine, no artigo “A América Latina e a experiência comunista”,
publicado em 1998, calcula em mais de 100 mil cubanos vítimas da repressão, nas
prisões e campos de trabalhos forçados, e entre 15 e 17 mil assassinados, em
regra via fuzilamentos. A era Castro produziu mais de dois milhões de exilados,
cerca de 15% da população do país, que, ademais, ostenta o maior índice de
suicídios e greves de fome da América Latina.
Quiçá, a maior tragédia de todas seja a epopeia dos
balseiros. Calcula-se em cerca de 12 mil o número de cubanos que tentaram a
sorte no mar do Caribe, tentando atravessar, em velhas embarcações, boias de
borracha, cascos de caminhões e velhos buicks, as 90 milhas que separam a Ilha
da costa da Flórida. Está para ser contato o drama humano que envolveu milhares
de pessoas, muitos desaparecidos durante ou após a travessia, muitos exitosos,
e milhares ainda “estacionados” na base americana de Guantánamo. O caso mais
sinistro, envolvendo os balseiros, provavelmente seja o do afundamento do
Rebocador 13 de Março, na madrugada de 13 de julho de 1994. O Rebocador levava
72 cubanos, tendo sido afundado por barcos da guarda cubana, a sete milhas da
costa da Ilha. Os funcionários cubanos negaram socorro aos náufragos, o que
resultou na morte de 41 pessoas, entre os quais 10 menores de idade. A Anistia
Internacional, como de hábito, gastou anos exigindo uma investigação séria a
respeito. Obteve, como sempre, o misto de silêncio e evasivas, por parte do
governo cubano, e complacência, por parte da comunidade internacional.
Histórias como esta definem a tragédia dos balseiros cubanos como um caso de
genocídio.
Fidel expressou como poucos, na época moderna, o paradoxo,
ou o mistério, da ideologia: a brutal ausência de empatia ou consideração
humana, travestida do mais alto sentido de generosidade. Do exercício
permanente do duplo sentido, da mentira mais absurda, ainda que sedutora. Em
1990, em uma entrevista ao programa Roda Viva, assegurou que, em Cuba, nunca
houvera “abuso de autoridade ou violência contra a pessoa humana”. Que não
havia “um só caso de assassinato político ou de um homem torturado”. Para o
sintomático silêncio dos jornalistas presentes. Ninguém perguntou por Eusébio
Penãlver, o prisioneiro político de raça negra que mais tempo esteve
encarcerado (28 anos), em todo o mundo, por Antônio Yebra, Armando Valladares,
Pedro Boitel, como ninguém perguntaria por Orlando Zapata, Oscar Biscet, e
milhares de cubanos cujas fotografias, em preto e branco, habitam sites
rudimentares, na internet, pedindo justiça ou o simples direito à memória. Ler
e compreender o que se passou com cada uma dessas pessoas sempre será a melhor
maneira de conhecer, para além do feitiço das grandes palavras, a identidade de
Fidel Castro.
O Cavallo teve um destino imensamente mais generoso do que
outros ditadores, no século XX e XXI. À parte o mais longevo, conseguiu levar a
sua ditadura até o fim. Levou o país aos estertores, mas tirou a sorte grande
de morrer no poder. Com isto escapou de ser julgado pelos milhares de
assassinatos, perseguições em massa, crimes de estado e crimes contra a
humanidade. Sugestivamente, pediu para ser cremado. É intuitivo, o velho
ditador. Nada de restos. Melhor viver na fluidez da memória. Cuba será livre,
algum dia, talvez logo ali a frente, e sua história será reescrita sem a pátina
da ideologia e a vassalagem do estado policial. Neste dia muitos sentirão
vergonha, não tenho dúvidas. E muitos, hoje esquecidos, serão lembrados.
Schüler ótimo! Um artigo diametralmente oposto do de Newton Carlos, logo abaixo. Sem coloração ideológica. Preso somente à História. É preciso elogiar? Não. A qualidade do texto faz o que é necessário...
ResponderExcluirSerá que vamos ter canecas e chaveiros como foi com o CHE?
ResponderExcluir(argento) ... poiZé, tava vendo as imagens, pela GLOBO, das homenagens póstumas a Fidel. Tudo limpinho, povo feliz e arrumadinho, as mulheres com adornos e penduricalhos que alimentariam os sonhos dos ladrões de rua do BraZiu. Teve assinatura de compromisso à continuidade da revolução. Será? - ou a maioria compareceu compulsoriamente, ou tava lá pra conferir se Fidel morreu de verdade. Quem arrisca um triplo? ...
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