quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Um dos maiores absurdos proporcionados pelo comunismo: a Teoria dos Dois Campos


Andrei Zdanov e a Teoria dos Dois Campos

Em 1947 Andrei Zdanov, ideólogo do stalinismo, concebeu a fórmula conhecida como a Teoria dos Dois Campos que serviu como cobertura ideológica para que o Partido Comunista da URSS acelerasse a satelitização do Leste europeu. Era a unívoca resposta soviética ao Discurso de Fulton de W.Churchill, ao Plano Marshall e à Doutrina Truman que, juntos, lançaram as bases da política anglo-americana da “contenção” ao comunismo que deu início à Guerra Fria.

Um mundo polarizado e hostil

A teoria (enunciada em Szklarska Poreba , na Polônia, por ocasião da constituição do Kominform , em 22 de setembro de 1947), uma resposta direta ao Plano Marshall anunciado pelos Estados Unidos, dizia que todas as esferas do pensamento e da ação estavam divididas em dois campos mutuamente excludentes, antagônicos e irreconciliáveis, representados no plano das potências pela URSS e pelos Estados Unidos. A primeira delas liderava o Bloco Anti-imperialista e Democrático, a outra o Bloco Imperialista e Antidemocrático.

Na filosofia e na ciência, opunham-se o idealismo e o materialismo; na biologia, a genética reacionária de Mendel (adotada pelo Ocidente) e a genética revolucionária de Michurin e Lisenko, (que conduziria ao desastre a triticultura soviética); na arte, o subjetivismo burguês decadente e o realismo socialista; na política, o imperialismo e o socialismo, cada um deles com os seus aliados. Desde a morte do profeta Maniqueu, no século III, o mundo não conhecia uma oposição doutrinaria tão extremada entre o Bem e o Mal como a teoria stalinista dos Dois Campos.

Nenhuma outra dimensão da existência humana podia ser admitida como sendo indiferente e todas estavam a serviço da política. Em cada caso - da filosofia à literatura, do cinema ao divertimento - não se reconhecia outra alternativa: quem não pertencia explícita e ativamente ao campo revolucionário e socialista, isto é, ao lado da União Soviética, situava-se, pelo menos objetivamente, no campo do inimigo, o do capitalismo explorador: o Mal. Assim, o mundo viu-se engessado.

Em última instância, tratava-se da inteira politização do pensamento e da ética e, logo, da sujeição de ambos a um grosseiro dualismo ideológico que levou a que os países do Leste europeu, dominado pelos partidos comunistas locais, ainda que fortemente abalados pela guerra, não ousassem encaminhar a solicitação de qualquer tipo de apoio dos norte-americanos.

O Bem contra o Mal

Como resultado de um processo de extrema e brutal simplificação da realidade, a vida política na percepção totalitária era entendida em termos de um permanente enfrentamento entre dois pólos absolutos – o da verdade e o do erro, o do bem e o do mal, do amigo e do inimigo, do amor e do ódio – diante dos quais a neutralidade ou a indiferença não são apenas suspeitas, mas criminosas.

Combinando exclusivismo e envolvimento, essa visão da realidade e da política provê o mecanismo por excelência de manipulação psicológica de massas pelo sectarismo dos seus propósitos.

Posição essa, diga-se a bem da verdade, não muito diferente da abraçada por John Foster Dulles, o conhecido secretário de estado do governo do presidente Einsenhower, entre 1953 e 1959, que considerava a neutralidade como “imoral”. Fato que comprova que submetida a uma forte tensão, como foi aquele período crítico da guerra fria, nem a mais sólida democracia escapava de inclinar-se pelo radicalismo ideológico.

Reforçando o poder de Stalin

A Teoria dos Dois Campos, uma rememoração do Tratado de Tordesilhas aplicado à ideologia, ocultava por igual outras intenções, além de realimentar um confronto dos soviéticos contra as potencias ocidentais (substituindo desta feita os nazistas e os japoneses pelos anglo-saxões). Stalin possivelmente percebeu que a continuidade do seu domínio sobre a nação russa e sobre os novos territórios ocupados pelo Exército Vermelho entre 1944-45 (batizados em seguida como “Democracias Populares”), sofreria pressões para que ele abrandasse o sistema de coerção que ele implantara desde os anos vinte.

Sinais disso já haviam aflorado durante a guerra, batizada pelos soviéticos de a Grande Guerra Patriótica, quando o regime, especialmente depois que começou a acumular vitórias sobre as divisões nazistas, mostrou-se mais tolerante e menos repressivos em função da crescente euforia com que era tomada a população russa com as boas notícias que vinha da frente de combate. Um clamor pelo afrouxamento se alastrava pelo país dos sovietes, visto que o maior dos seus inimigos havia sido completamente batido. Ninguém de sã consciência podia imaginar onde aquilo poderia acabar.

Além disso, era preciso reconstruir o país inteiro. A ocupação nazista, entre 1941-44, deixara a URSS em frangalhos, sangrando por todos os poros. Milhões de cidadãos e soldados soviéticos haviam perecido e a maior parte das cidades de médio e grande porte haviam sido arrasadas. A infraestrutura dos transportes e das comunicações fora arrasada, as minas inundadas ou explodidas, os campos e celeiros incendiados, as pontes destruídas, a URSS era um caos no final da guerra.

A guerra continuava

Então Stalin bateu na mesa. Enganavam-se os que profetizavam algum tipo de convívio pacífico com as nações capitalistas. Elas de fato queriam a destruição da URSS e somente estariam à espera das condições ideais para moverem-se contra o socialismo soviético. Era uma questão de tempo. Por conseguinte todo aquele que pregasse uma aproximação com os Estados Unidos ou defendesse uma posição não - conflitante ou conciliadora com o Ocidente capitalista merecia a suspeita do regime soviético. O que era preciso era retomar a concentração absoluta do poder.

Somente assim, com Stalin retendo o controle total da alavanca do estado e impondo a “disciplina do açoite”, seria possível repor o que fora devastado. Um novo tipo de guerra se prefigurava no horizonte, na qual seriam as ideias tanto quanto as possíveis poderosas bombas quem fariam o maior estrago.

Para tanto era preciso reativar a “síndrome da fortaleza sitiada”, que implicava numa decisão de tolerância zero com que lhe fizesse oposição ou refugasse em obedecê-lo. O mesmo se aplicando aos partidos comunistas não-soviéticos que se espalhavam então pelo mundo. Qualquer dissidência seria punida com a expulsão. Na URSS com a prisão ou o fuzilamento.

Até os artistas soviéticos mais famosos foram reciclados pela Zhdanovshchina, a política cultural de Zdanov, quando por ocasião de um congresso realizado em Moscou , em abril de 1948, o comissário passou uma exemplar reprimenda nos maiores compositores do país, como Sergei Prokofiev, Aram Khachaturian e Dmitri Shostakovitch (até então o mais celebrado músico do regime, autor da Sinfonia da Vitória, em 1945), este acusado violentamente de “formalismo” e de ser “antinacional”(seja lá o que isso possa significar), e totalmente inábil em refletir o sentimento do povo soviético.

Outra das suas vítimas, que então estava bem longe de ser célebre - ao contrario do satirista Zoshchenko e da poetisa Ana Akmátova - , foi o escritor Alexander Soljenitsin, preso em 1945 e enviado por muitos anos a um campo correcional por ter feito um referencia crítica a Stalin numa correspondência pessoal que infelizmente foi lida por um agente da censura.

Era pois este o pano de fundo político em que brotou a Teoria dos Dois Campos e que perdurou, ainda que mitigada a partir de 1952, pelo menos até o XX Congresso do Partido Comunista da URSS, realizado em 1956, quando Nikita Krushev denunciou Stalin e o “culto da personalidade” e deu início a chamada “coexistência pacífica”.


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