Andrei Zdanov e a Teoria dos Dois Campos
Em 1947 Andrei Zdanov, ideólogo do stalinismo, concebeu a
fórmula conhecida como a Teoria dos Dois Campos que serviu como cobertura
ideológica para que o Partido Comunista da URSS acelerasse a satelitização do
Leste europeu. Era a unívoca resposta soviética ao Discurso de Fulton de
W.Churchill, ao Plano Marshall e à Doutrina Truman que, juntos, lançaram as
bases da política anglo-americana da “contenção” ao comunismo que deu início à
Guerra Fria.
Um mundo polarizado e
hostil
A teoria (enunciada em Szklarska Poreba , na Polônia, por
ocasião da constituição do Kominform , em 22 de setembro de 1947), uma resposta
direta ao Plano Marshall anunciado pelos Estados Unidos, dizia que todas as
esferas do pensamento e da ação estavam divididas em dois campos mutuamente
excludentes, antagônicos e irreconciliáveis, representados no plano das
potências pela URSS e pelos Estados Unidos. A primeira delas liderava o Bloco
Anti-imperialista e Democrático, a outra o Bloco Imperialista e
Antidemocrático.
Na filosofia e na ciência, opunham-se o idealismo e o
materialismo; na biologia, a genética reacionária de Mendel (adotada pelo
Ocidente) e a genética revolucionária de Michurin e Lisenko, (que conduziria ao
desastre a triticultura soviética); na arte, o subjetivismo burguês decadente e
o realismo socialista; na política, o imperialismo e o socialismo, cada um
deles com os seus aliados. Desde a morte do profeta Maniqueu, no século III, o
mundo não conhecia uma oposição doutrinaria tão extremada entre o Bem e o Mal
como a teoria stalinista dos Dois Campos.
Nenhuma outra dimensão da existência humana podia ser
admitida como sendo indiferente e todas estavam a serviço da política. Em cada
caso - da filosofia à literatura, do cinema ao divertimento - não se reconhecia
outra alternativa: quem não pertencia explícita e ativamente ao campo
revolucionário e socialista, isto é, ao lado da União Soviética, situava-se,
pelo menos objetivamente, no campo do inimigo, o do capitalismo explorador: o
Mal. Assim, o mundo viu-se engessado.
Em última instância, tratava-se da inteira politização do
pensamento e da ética e, logo, da sujeição de ambos a um grosseiro dualismo
ideológico que levou a que os países do Leste europeu, dominado pelos partidos
comunistas locais, ainda que fortemente abalados pela guerra, não ousassem
encaminhar a solicitação de qualquer tipo de apoio dos norte-americanos.
O Bem contra o Mal
Como resultado de um processo de extrema e brutal
simplificação da realidade, a vida política na percepção totalitária era
entendida em termos de um permanente enfrentamento entre dois pólos absolutos –
o da verdade e o do erro, o do bem e o do mal, do amigo e do inimigo, do amor e
do ódio – diante dos quais a neutralidade ou a indiferença não são apenas
suspeitas, mas criminosas.
Combinando exclusivismo e envolvimento, essa visão da
realidade e da política provê o mecanismo por excelência de manipulação
psicológica de massas pelo sectarismo dos seus propósitos.
Posição essa, diga-se a bem da verdade, não muito diferente
da abraçada por John Foster Dulles, o conhecido secretário de estado do governo
do presidente Einsenhower, entre 1953 e 1959, que considerava a neutralidade
como “imoral”. Fato que comprova que submetida a uma forte tensão, como foi
aquele período crítico da guerra fria, nem a mais sólida democracia escapava de
inclinar-se pelo radicalismo ideológico.
Reforçando o poder de
Stalin
A Teoria dos Dois Campos, uma rememoração do Tratado de
Tordesilhas aplicado à ideologia, ocultava por igual outras intenções, além de
realimentar um confronto dos soviéticos contra as potencias ocidentais
(substituindo desta feita os nazistas e os japoneses pelos anglo-saxões).
Stalin possivelmente percebeu que a continuidade do seu domínio sobre a nação
russa e sobre os novos territórios ocupados pelo Exército Vermelho entre
1944-45 (batizados em seguida como “Democracias Populares”), sofreria pressões
para que ele abrandasse o sistema de coerção que ele implantara desde os anos
vinte.
Sinais disso já haviam aflorado durante a guerra, batizada
pelos soviéticos de a Grande Guerra Patriótica, quando o regime, especialmente
depois que começou a acumular vitórias sobre as divisões nazistas, mostrou-se
mais tolerante e menos repressivos em função da crescente euforia com que era
tomada a população russa com as boas notícias que vinha da frente de combate.
Um clamor pelo afrouxamento se alastrava pelo país dos sovietes, visto que o
maior dos seus inimigos havia sido completamente batido. Ninguém de sã
consciência podia imaginar onde aquilo poderia acabar.
Além disso, era preciso reconstruir o país inteiro. A
ocupação nazista, entre 1941-44, deixara a URSS em frangalhos, sangrando por
todos os poros. Milhões de cidadãos e soldados soviéticos haviam perecido e a
maior parte das cidades de médio e grande porte haviam sido arrasadas. A infraestrutura
dos transportes e das comunicações fora arrasada, as minas inundadas ou
explodidas, os campos e celeiros incendiados, as pontes destruídas, a URSS era
um caos no final da guerra.
A guerra continuava
Então Stalin bateu na mesa. Enganavam-se os que profetizavam
algum tipo de convívio pacífico com as nações capitalistas. Elas de fato
queriam a destruição da URSS e somente estariam à espera das condições ideais
para moverem-se contra o socialismo soviético. Era uma questão de tempo. Por
conseguinte todo aquele que pregasse uma aproximação com os Estados Unidos ou
defendesse uma posição não - conflitante ou conciliadora com o Ocidente
capitalista merecia a suspeita do regime soviético. O que era preciso era
retomar a concentração absoluta do poder.
Somente assim, com Stalin retendo o controle total da
alavanca do estado e impondo a “disciplina do açoite”, seria possível repor o
que fora devastado. Um novo tipo de guerra se prefigurava no horizonte, na qual
seriam as ideias tanto quanto as possíveis poderosas bombas quem fariam o maior
estrago.
Para tanto era preciso reativar a “síndrome da fortaleza
sitiada”, que implicava numa decisão de tolerância zero com que lhe fizesse
oposição ou refugasse em obedecê-lo. O mesmo se aplicando aos partidos
comunistas não-soviéticos que se espalhavam então pelo mundo. Qualquer
dissidência seria punida com a expulsão. Na URSS com a prisão ou o fuzilamento.
Até os artistas soviéticos mais famosos foram reciclados
pela Zhdanovshchina, a política cultural de Zdanov, quando por ocasião de um
congresso realizado em Moscou , em abril de 1948, o comissário passou uma
exemplar reprimenda nos maiores compositores do país, como Sergei Prokofiev,
Aram Khachaturian e Dmitri Shostakovitch (até então o mais celebrado músico do
regime, autor da Sinfonia da Vitória, em 1945), este acusado violentamente de “formalismo”
e de ser “antinacional”(seja lá o que isso possa significar), e totalmente
inábil em refletir o sentimento do povo soviético.
Outra das suas vítimas, que então estava bem longe de ser
célebre - ao contrario do satirista Zoshchenko e da poetisa Ana Akmátova - ,
foi o escritor Alexander Soljenitsin, preso em 1945 e enviado por muitos anos a
um campo correcional por ter feito um referencia crítica a Stalin numa
correspondência pessoal que infelizmente foi lida por um agente da censura.
Era pois este o pano de fundo político em que brotou a
Teoria dos Dois Campos e que perdurou, ainda que mitigada a partir de 1952,
pelo menos até o XX Congresso do Partido Comunista da URSS, realizado em 1956,
quando Nikita Krushev denunciou Stalin e o “culto da personalidade” e deu
início a chamada “coexistência pacífica”.
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