Adriana Dias Lopes e Egberto Nogueira na Veja
Tem uma coisa beliscando na minha barriga. Talvez seja ruim.
Quero aquele negócio que entra pela boca e vai rasgando até lá embaixo pra ver
o que é esse trem.” Foi assim que João Teixeira de Faria, o João de Deus, de 74
anos, o mais celebrado médium brasileiro, pediu a seu médico de longa data, o
cardiologista Roberto Kalil, para ser examinado. Com essas expressões de
simplicidade franciscana e simpaticamente caipiras, ele se referia à
endoscopia, exame de imagem pelo qual é possível rastrear doenças no aparelho
digestivo. A demanda de João de Deus a Kalil foi feita em um momento inusitado:
na festa de casamento do cardiologista com a endocrinologista Claudia Cozer
Kalil, na hora dos cumprimentos aos noivos. Era 9 de maio de 2015. Poucos dias
depois, a endoscopia associada a uma biópsia revelou o diagnóstico dramático da
coisa que beliscava na barriga, um câncer agressivo no estômago. Tecnicamente,
adenocarcinoma gástrico, de 6 centímetros, localizado no antro, porção logo
abaixo da metade do órgão. O tumor maligno foi extraído numa cirurgia de dez
horas, em agosto de 2015, pelo cirurgião Raul Cutait, no Hospital
Sírio-Libanês, em São Paulo. Delicada e complexa, a operação extirpou metade
do estômago.
Discreto e indiferente à fama, que ganhou uma audiência mundial
desde que apareceu em reportagem da apresentadora americana Oprah Winfrey, em
2012, João de Deus só revelou que tinha câncer a familiares e pessoas de
extrema confiança. Nas raras vezes em que mencionou a doença nas sessões com os
peregrinos que o procuraram em Abadiânia, no interior de Goiás, contornava a
gravidade da situação. Uma hérnia no estômago, dizia-se. Seu calvário durou um
ano, entre o diagnóstico e a superação do câncer. Eu o conheci numa de suas
sessões de quimioterapia. Foi em 6 de dezembro do ano passado. Às 15 horas,
entrei no quarto em que ele estava internado, no número 964, no Sírio-Libanês.
O médium estava sentado na cama, com um copo de café com leite nas mãos. Ao
tomar o primeiro gole, sorriu: “Quero um leite de verdade, como o da minha
terra”. Atenderam ao seu pedido. Trocaram então o leite em pó pelo de caixinha,
mais denso. A certa altura, ele pediu que eu me aproximasse, apertou minha mão
fortemente e perguntou: “Você sabe cozinhar, minha irmã?”. A negativa não lhe
bastou. Disse que era fundamental eu aprender o ofício e lembrou de um de seus
pratos prediletos, o galopé, receita caipira à base de pé de porco e galinha.
“O segredo é usar galinha velha”, recomendou.
A quimioterapia durou cinco meses, sempre em clima de
completa discrição. João de Deus usou dois medicamentos. A capecitabina, tomada
em pílulas em ciclos de catorze dias, e a cisplatina, administrada em oito
sessões com intervalos de 21 dias. A combinação provoca efeitos colaterais
severos. O médium teve enjoos, perda de apetite, anemia e cansaço. Em duas
sessões de cisplatina, chegou a sofrer queda de plaquetas, como são chamadas as
células sanguíneas envolvidas nos processos de coagulação e cicatrização do
organismo. Precisou receber transfusão de sangue. Ele, que chegou a pesar 130
quilos, distribuídos em 1,80 metro, perdeu 30 quilos durante o tratamento.
Hoje, continua magro, mas já recuperou 5 quilos. Estive em outras duas sessões
de quimioterapia. Um pouco mais debilitado, João de Deus mantinha o ânimo de
quem sabia ser necessário passar por todo o processo. Quieto, mais quieto que o
normal, acatava as orientações médicas com humildade.
Para um médium que atende cerca de 1 000 pessoas
diariamente, fragilizadas, em busca de ajuda, de alento espiritual e mesmo
cura, é curiosa a decisão de recorrer à medicina convencional. Perguntei-lhe por que se socorreu da
ciência em vez de procurar alguém como ele próprio, que incorpore outros
médicos. Em resposta, fez uma indagação: “O barbeiro corta o próprio cabelo?”.
Durante todo o tratamento, João de Deus nunca reclamou nem perdeu as forças.
Reagiu sempre de modo positivo e com disposição para se submeter a todas as
intervenções médicas. Como paciente, era um paciente comum. Por duas vezes
viajou de carro de Goiás a São Paulo. Só voava por insistência dos amigos.
Nunca quis dormir no hospital. Teve de abrir uma exceção, por determinação
médica, quando sofreu uma perda de plaquetas e precisou receber cuidados
extras. Para não deixar de trabalhar um só dia, quis que as sessões fossem
feitas sempre aos domingos. Ia e voltava para casa rapidamente, embora passasse
algumas noites hospedado em um hotel paulistano.
A última sessão de quimioterapia ocorreu em 28 de fevereiro.
Em maio passado, um ano depois do pedido de exame feito na festa de casamento,
João de Deus soube que os sinais do câncer em seu organismo haviam
desaparecido. Teve alta. “Seu João é um exemplo de como é fundamental um médico
ouvir o paciente”, diz Roberto Kalil. Há três anos, durante um check-up
rotineiro de João de Deus, Kalil identificou uma obstrução nos vasos do
coração. O médium, que é hipertenso, recebeu então três stents nas artérias. Já
tinha naquela época outros três, colocados em 2000. Como aconteceu com o
câncer, João de Deus também não divulgou seu problema cardíaco. A reserva com
que trata a própria saúde, a ponto de manter em sigilo um tratamento de meses
para debelar um câncer agressivo, não é nenhuma tática marota de parecer
infalível aos olhos dos peregrinos que vão a Abadiânia. João de Deus simplesmente
quase não fala de si mesmo. E, aos que o procuram em decorrência de problemas
de saúde, sistematicamente recomenda que consultem um médico.
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