Época
Em outubro de 1968, o Serviço Nacional de Informações (SNI)
produziu um documento de 140 páginas sobre o estado da “guerra revolucionária
no país”. Quatro anos após o golpe que instalou a ditadura militar no Brasil,
grupos de esquerda promoviam ações armadas contra o regime. O relatório lista
assaltos a bancos, atentados e mortes. Em Minas Gerais, o SNI se preocupava com
um grupo dissidente da organização chamada Polop (Política Operária). O texto
afirma que reuniões do grupo ocorriam em um apartamento na Rua João Pinheiro,
82, em Belo Horizonte, onde vivia Cláudio Galeno Linhares. Entre os militantes
aparece Dilma Vana Rousseff Linhares, descrita como “esposa de Cláudio Galeno
de Magalhães Linhares (‘Lobato’). É estudante da Faculdade de Ciências
Econômicas e seus antecedentes estão sendo levantados”. Dilma e a máquina
repressiva da ditadura começavam a se conhecer.
As falsas Dilmas |
Durante os cinco anos em que essa máquina funcionou com
maior intensidade, de 1967 a 1972, a militante Dilma Vana Rousseff (ou Estela,
ou Wanda, ou Luiza, ou Marina, ou Maria Lúcia) viveu mais experiências do que a
maioria das pessoas terá em toda a vida. Ela se casou duas vezes, militou em
duas organizações clandestinas que defendiam e praticavam a luta armada, mudou
de casa frequentemente para fugir da perseguição da polícia e do Exército,
esteve em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, adotou
cinco nomes falsos, usou documentos falsos, manteve encontros secretos dignos
de filmes de espionagem, transportou armas e dinheiro obtido em assaltos,
aprendeu a atirar, deu aulas de marxismo, participou de discussões ideológicas
trancada por dias a fio em “aparelhos”, foi presa, torturada, processada e
encarou 28 meses de cadeia.
Hoje candidata do PT à Presidência da República, Dilma fala
pouco sobre esse período. ÉPOCA pediu, em várias ocasiões nos últimos meses,
uma entrevista a Dilma para esclarecer as dúvidas que ainda existem sobre o
assunto (leia algumas delas no quadro da última página). Todos os pedidos foram
negados. Na última sexta-feira, a assessoria de imprensa da campanha de Dilma
enviou uma nota à revista em que diz que “a candidata do PT nunca participou de
ação armada”. “Dilma não participou, não foi interrogada sobre o assunto e
sequer denunciada por participação em qualquer ação armada, não sendo nem
julgada e nem condenada por isso. Dilma foi presa, torturada e condenada a dois
anos e um mês de prisão pela Lei de Segurança Nacional, por ‘subversão’, numa
época em que fazer oposição aos governos militares era ser ‘subversivo’”, diz a
nota.
Dilma foi denunciada por chefiar greves e assessorar
assaltos a banco
A trajetória de Dilma na luta contra a ditadura pode ser
conhecida pela leitura de mais de 5 mil páginas de três processos penais
conduzidos pelo Superior Tribunal Militar nas décadas de 1960 e 1970. Eles
estão no acervo do projeto Brasil: Nunca Mais, à disposição na sala Marco
Aurélio Garcia (homenagem ao assessor internacional da Presidência) no arquivo
Edgard Leuenroth, que funciona em um prédio no campus da Universidade de
Campinas, em São Paulo, e em outros arquivos oficiais. A leitura de relatórios,
depoimentos e recursos burocráticos permite conhecer um período da vida de uma
pessoa que mergulhou no ritmo alucinante de um tempo intenso. O contexto
internacional dos anos 1960, de um mundo dividido entre direita e esquerda, em
blocos de países capitalistas e comunistas, propiciava opções radicais. O golpe
militar de 1964 instaurou no Brasil um regime ditatorial que sufocou as
liberdades no país e reprimiu oposições. Milhares de pessoas foram presas por
se opor ao regime, centenas foram assassinadas após sessões de tortura
promovidas por uma horda de agentes públicos mantidos ocultos ou fugiram para o
exílio para escapar da repressão.
Dilma Rousseff foi um desses jovens marxistas que, influenciados
pelo sucesso da revolução em Cuba liderada por Fidel Castro nos anos 50, se
engajaram em organizações de luta armada com a convicção de que derrubariam a
ditadura e instaurariam um regime socialista no Brasil. Dilma está entre os
sobreviventes da guerra travada entre o regime militar e essas organizações.
Filha de um búlgaro e uma brasileira, estudante do tradicional colégio Sion, de
Belo Horizonte, a vida de classe média alta de Dilma mudou a partir do
casamento com o jornalista Cláudio Galeno Magalhães Linhares, em 1967. “(Dilma)
Ingressou nas atividades subversivas em 1967, levada por Galeno Magalhães
Linhares, então seu noivo”, afirma um relatório de 1970 da 1a Auditoria
Militar. As primeiras menções a Dilma em documentos oficiais a citam como
integrante de uma dissidência da Polop. Esse grupo adotou o nome de
Organização. Com novas adesões de militantes que abandonaram o Movimento
Nacionalista Revolucionário (MNR), a Organização se transformou em Colina
(Comando de Libertação Nacional). Em seu documento básico, o Colina aderiu às
ideias de Régis Debray, autor francês que, inspirado na experiência cubana de
Fidel Castro, defendia a propagação de revoluções socialistas a partir de focos
guerrilheiros. A doutrina de Debray ficou conhecida como “foquismo”.
Ex-contemporâneos de prisão citam o apartamento de Dilma da
Rua João Pinheiro, em Belo Horizonte, como um dos principais pontos de reuniões
da organização. Em depoimento prestado no dia 4 de março de 1969, o militante
do Colina Ângelo Pezzutti afirma que “encontrou-se (com outro militante)
algumas vezes no apartamento 1.001, Condomínio Solar, residência de Galeno e
Dilma”. Dilma é citada como responsável por ministrar aulas de marxismo,
comandar uma “célula” na universidade para atrair novos militantes para a
causa. “Em princípios de 1968, o declarante, por recomendação de Carlos
Alberto, coordenou uma célula política, na qual tomaram parte Dilma, estudante
de economia, cujo nome de guerra é Estela, Erwin e Oscar (nomes de outros dois
militantes)”, diz o depoimento de outro militante, Jorge Raimundo Nahas. “O
objetivo principal dessa célula era trabalhar o meio estudantil.” Um dos
universitários recrutados foi Fernando Damata Pimentel, de 17 anos. Ex-prefeito
de Belo Horizonte, Pimentel é candidato ao Senado pelo PT e é um dos
coordenadores da campanha de Dilma.
De acordo com os depoimentos, nas reuniões – muitas
realizadas no apartamento de Dilma – o grupo decidia suas ações. Em seu
depoimento, Nahas afirmou que parte do Colina, com o decorrer do tempo, passou
a acreditar que a organização deveria ter um caráter mais militar. Foram
criados setores de “expropriação, levantamento de áreas, sabotagem e
inteligência e informações”. “Dilma e Oscar permaneceram no setor estudantil”,
diz Nahas. Essa decisão marca um ponto de inflexão na curta história do Colina.
O grupo passou a fazer ações armadas. O historiador Jacob Gorender, que esteve
preso com Dilma no presídio Tiradentes, em São Paulo, é autor de Combate nas
trevas, o mais completo relato da luta armada contra a ditadura militar. Ele
afirma que o Colina foi uma das poucas organizações a fazer a “pregação
explícita do terrorismo”.
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