O Brasil dos nossos dias realmente elevou ao estado de arte,
como se diz, a capacidade que as classes superiores desenvolveram nesses
últimos tempos para transformar questões de desimportância ilimitada em motivo
para discussões de altíssima tensão, nas quais se debate, desesperadamente, o
destino final de tudo o que pode existir de essencial na existência humana. A
mulher do empresário Nizan Guanaes, por exemplo, cometeu ou não crime de
racismo ao utilizar os serviços profissionais de negras vestidas com o traje
clássico de baianas, em sua recente festa de aniversário em Salvador? Quais os
segredos de vida e morte que o ex-ministro Gustavo Bebianno, do qual nenhum
cidadão comum jamais tinha ouvido falar até hoje, vai enfim “contar para todo
mundo” ─ e provocar com isso a autodestruição imediata do governo? O
vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, já está marcando
reuniões secretas com a CUT, a Conferência Nacional dos Bispos e o
ex-presidente Fernando Henrique para acertar os detalhes finais do golpe de
Estado que vai derrubar, a qualquer horinha dessas, o presidente Jair
Bolsonaro? Viram o que saiu publicado na coluna do colunista A? E o que saiu
publicado na coluna do colunista Z? Com a crise cada vez mais grave, quantos
meses ainda pode durar este governo? E por aí se vai.
Nenhum desses portentos tem a mais remota possibilidade de
resultar em qualquer tipo de coisa relevante, é claro, mas cada um deles faz um
barulho danado até evaporar do noticiário, para dar lugar a outros vendavais da
mesma qualidade. Aguarde a qualquer momento, portanto, mais uma crise fatal em
Brasília - ou melhor, mais um “desdobramento” da crise que se instalou no
governo desde o dia 1º de janeiro deste ano e até agora não foi embora. Já
ouvimos, entre outras desgraças garantidas, que o presidente jamais conseguiria
montar o seu ministério sem entregar a alma e o erário aos “políticos”. Anular
o convite para o ditador da Venezuela vir à cerimônia de posse de Bolsonaro foi
uma atitude “de altíssimo risco” do novo governo ─ o Brasil, com essa decisão
tresloucada, estava se isolando do resto do mundo. Renan Calheiros iria ser
eleito para a presidência do Senado e, a partir dali, formaria um vigoroso polo
de “poder alternativo” ao governo; a “Resistência” encontraria nele o seu novo
comandante. Outros terremotos, além desses? É só escolher no Google.
Fica a impressão, no meio de toda essa calamidade
permanente, que a vida política brasileira está tentando, em pleno século XXI,
operar num sistema de moto-contínuo - os fatos, aí, se criariam através da
reutilização infinita da energia gerada pelo movimento desses próprios fatos. É
a fantasia da máquina que funciona sozinha. O moto-contínuo, como se ensinava
na escola, é um fenômeno cientificamente impossível, por violar as leis da
termodinâmica. Mas isso aqui é o Brasil, e no Brasil todo mundo sabe que há uma
porção de leis que não pegam - talvez seja o caso, justamente, da “crise
política” que é apresentada todos os dias ao público. Um acontecimento ganha
vida, prospera, desaparece e se reproduz num outro, o tempo todo; o mesmo
processo se repete com esse outro acontecimento, e assim a coisa não para
nunca. Não tem a menor importância a força real dos fatos apresentados à
população, nem a constatação de que nunca resultam em nada de prático; eles
existem porque são anunciados, e pronto.
A próxima catástrofe é a reforma da previdência que o
governo acaba de apresentar à Câmara dos Deputados. Tanto faz o que vai
realmente acontecer. Mesmo que as mudanças sejam aprovadas, você ouvirá que o
governo sofreu mais uma derrota - ou porque tal ou qual item não passou, ou
porque “o custo foi alto demais”, ou porque o ministro Zé falou uma coisa e o
ministro Mané falou outra, e assim por diante. As verdadeiras questões que têm
de ser resolvidas, enquanto isso, ficam voando no espaço sideral, inalcançáveis
por um debate neurastênico, rasteiro e sem lógica.