Artigo de Nelson Paes
Leme, cientista político, no Globo de hoje. Um pouco extenso, mas
absolutamente correto.
Que República!
O Senado do Brasil, presidido excepcionalmente pelo
presidente do Supremo Tribunal Federal, na culminância do procedimento de
impeachment da presidente Dilma Rousseff, para surpresa geral do mundo
acadêmico, acaba de inventar a mais nova jabuticaba. Daqui para a frente tudo
vai ser diferente: o poder constituído poderá fatiar, ao seu bel-prazer, o
texto constitucional elaborado pelo poder constituinte. E agora? Agora, o
próprio Supremo Tribunal Federal, guardião que é da Constituição brasileira,
vai dizer que não pode, claro! Não se pode fatiar um artigo da Carta Magna em
votação parlamentar unicameral, com base numa lei por ela recepcionada e por
ela até aperfeiçoada. Muito menos por manobra regimental sub-reptícia,
desprezando o rito estabelecido pelo próprio STF.
Tanto a Lei do Impeachment de 1950 quanto o regimento do
Senado são normas subalternas, na hierarquia constitucional das normas. Por
mais importante que seja a lei ou a norma para o processo de impedimento da
chefe do Executivo, nunca teria a prerrogativa de modificar o texto da
Constituição, alterando a intenção do constituinte originário. Nem o Senado nem
a Câmara têm essa prerrogativa sem quorum qualificado e rito específico exigido
pela própria Lei Maior. E, assim mesmo, através de PEC previamente aprovada em
sessão específica para tal fim, se pétrea não for a cláusula a ser alterada.
Pois o artigo 52 da Constituição e seu parágrafo único dizem
textual e claramente que a presidente da República perdeu o mandato e os
direitos políticos por oito anos na primeira (e única permitida) votação
havida, por 61 votos favoráveis a 20 votos contrários, vencidas todas as etapas
da discussão e assegurado o mais amplo contraditório. Ponto final. Numa só
fornada, perdeu mandato e direitos políticos, porque assim determina
escancaradamente a Constituição da República.
Portanto, a parte fatiada é simplesmente nula de pleno
direito. Nunca existiu porque não podia nem ser colocada em votação. Não há
previsão constitucional de “destaque” na votação do artigo regulador do
impeachment. Nada, assim, a temer. Nada, assim, a comemorar. Nada a discutir ou
rediscutir também. Nada sequer a anular porque nula já é de berço essa segunda
votação. Exceto, naturalmente, se a nova jabuticaba vingar, ou seja: o poder
constituído poderá, sim, derrogar o que o poder constituinte dispôs desde 1988,
quando foi promulgada a Constituição e, por consequência, mexer no texto do seu
artigo 52 e respectivo parágrafo único, claríssimo, que assim dispõe:
“Compete
privativamente ao Senado Federal:
I — processar e
julgar o presidente e o vice-presidente da República nos crimes de
responsabilidade, bem como os ministros de Estado e os comandantes da Marinha,
do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;
(redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 02/09/99).
Parágrafo único. Nos
casos previstos nos incisos I e II, funcionará como presidente o do Supremo
Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por
dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação,
por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais
sanções judiciais cabíveis”.
As lições de Teoria Geral do Estado e Direito
Constitucional, matérias elementares dos cursos jurídicos e sociais que todos
os ministros do Supremo estudaram no primeiro ano letivo de seus respectivos
bacharelados, devem barrar essa nova e exótica jabuticaba na antessala do
meirinho e do porteiro dos auditórios do Supremo Tribunal Federal. Nem ao Pleno
deveria ter acesso essa completa, rematada e inacreditável barbaridade
constitucional. O ministro Gilmar Mendes, diplomaticamente, já a qualificou de
“bizarra”, para dizer o mínimo. O poder constituinte, como o atributivo está a
designar com clareza semântica inseparável e inarredável, constitui o poder
constituído, pleonasticamente, e não o inverso. E o Legislativo legisla sob a
égide do que o constituinte originário assentou em assembleia específica com
esse fim, eleita pelo soberano: o povo brasileiro, há exatos 30 anos. A única
exceção é quando o Legislativo exerce o seu poder constituinte derivado como,
de resto, o fez em 1999, no caput do artigo 52.
Pois está aí a nossa sacrossanta e intangível Carta Magna,
desde 1988, ordenando leis, decretos, portarias, regimentos, recursos,
decisões, contratos e tudo o mais que se possa chamar de instrumento de Direito
positivo subalterno. Tudo o que a ela, Carta Maior, se contrapõe ou ofende,
rapidamente é corrigido nas próprias instâncias inferiores e, em último grau,
pelo Supremo Tribunal Federal, de ofício, como é o caso da novidade do
jabuticabal legiferante dessa nossa Terra de Vera Cruz, lançada no ar ao apagar
das luzes do mais longo, traumático e doloroso processo de impedimento de um
presidente da República. Mas o que é realmente estarrecedor e absurdo ao se
criar um destaque em texto constitucional é o fato de ter se dado essa
aberração por sugestão do presidente da Casa, ele mesmo um bacharel em Direito
e, pior, ter sido chancelada e colocada em votação por ninguém menos que um
emérito professor de Direito e, nada mais, nada menos, do que presidente da
mais alta corte judiciária da República Federativa do Brasil. E que República!
Nelson Jobim, que foi constituinte, Ministro da Justiça, Presidente do STF e Ministro da Defesa, revelou esta semana, ao Estadão ou à Folha, que a regra na constituinte era a ambiguidade. As leis eram feitas corretamente, depois eram incluídas ambiguidades, para serem aprovadas.
ResponderExcluirResumindo: a Constituição é uma farsa, não é possível haver estado de direito se existe ambiguidade na legislação, principalmente na Lei máxima, logo não existe democracia, pois não é possível haver democracia sem estado de direito.
Precisa dizer mais alguma coisa?
De maneira geral, eu até concordo com Jobim. Faz tempo que eu digo que essa Constituição é um saco de gatos (desde 1988), mas o artigo 52 não pode ser mais claro.
ExcluirSem dúvida, não conseguiram colocar ambiguidade em todos os artigos, mas concordo com O Antagonista, quando comentou a declaração do Jobim. Quando a constituição não é ambígua, é rasgada pelo STF.
ExcluirCom certeza o fatiamento do art. 52 da CF vai ser aprovado pelo plenario do STF e de nada adianta o jogo de cena do Gilmar Mendes dizendo que esse fatiamento do senado foi constrangedor e vergonhoso. o Escore vai ser de 7 a 3 porque a pres. carmen lucia não vota a não ser em caso de de empate. Quanto ao Toffoli vai votar contra o fatiamento para fazer média como de costume.Acredite se quiser
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