Correio Braziliense
A história do impeachment de Dilma Rousseff vai reservar um
capítulo especial a um brasiliense de 47 anos, que estudou em escolas públicas
e morou na Candangolândia e no Guará, quando aquelas cidades não tinham
asfalto. Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União
(TCU), Júlio Marcelo de Oliveira é o responsável, em grande parte, pelo inferno
petista, como autor da representação que levou à reprovação das contas de 2014
da presidente, por fraude fiscal, a maquiagem orçamentária que ficou
popularmente conhecida como pedaladas.
Júlio Marcelo ressalta que as irregularidades identificadas
pelo TCU são apenas parte de um conjunto de operações suspeitas. E diz que o
Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) precisa ser investigado. “O
banco foi utilizado como fonte de financiamentos subsidiados em larguíssima
escala, inédita. Foram R$ 500 bilhões em seis anos”, afirma Júlio Marcelo.
O Congresso levou em consideração a denúncia dos crimes
fiscais ao decidir afastar Dilma Rousseff?
O relatório foi lido, houve defesa, eles sabiam no que
estavam votando. Quando a Constituição diz que o impeachment vai ser admitido
pela Câmara e julgado pelo Senado, ela está implicitamente admitindo que é um
processo que tem duas dimensões: uma jurídica — porque não é algo banal — e uma
política. Porque, se fosse estritamente técnico, esse processo ficaria a cargo
do Supremo.
Não acha que parte dos políticos usou o argumento das
pedaladas como uma desculpa para tirar a presidente?
É possível, mas você teria que avaliar a motivação de cada
um, só entrando na cabeça de cada político. Evidentemente, o presidente que é
mais forte tem uma possibilidade menor de sofrer impeachment. Até porque começa
com a decisão discricionária do presidente da Câmara. Veja o poder que o
presidente da Câmara tem, pode inadmitir e daquela decisão não cabe recurso.
Isso dá uma sensação de que ele cumpriu o que tinha que
cumprir ali no Congresso e depois foi descartado. Um outro presidente da Câmara
talvez tivesse dado um despacho até mais desfavorável à presidente, porque ele
fez um recorte muito grande na denúncia. Ele tirou a maior parte e deixou duas
questões, perto do todo, bem menores do que tudo o que contava na denúncia.
E o que Cunha deixou de fora?
As pedaladas de 2014, que incluem a Caixa, o Banco do Brasil
e o BNDES; a questão da omissão da presidente em relação à Lava-Jato, que
também foi apontada pelos denunciantes; as pedaladas de 2015, com BB e BNDES; e
os decretos de crédito suplementar. Cunha faz um recorte, admite apenas as
pedaladas de 2015 do BB — excluiu o BNDES, não sei por quê — e mantém os
decretos de 2015. Tudo que aconteceu em 2014 ele desconsiderou. Então acaba que
o despacho de Cunha, em certa medida, foi favorável (à presidente Dilma).
O que os senadores devem levar em conta nesta nova fase do
processo?
A opinião que eu levei aos senadores está baseada em dois
pilares. Primeiro, os decretos de abertura de crédito suplementar. Esses
decretos que aconteceram em 2015 foram editados com a mesma
inconstitucionalidade verificada em 2014. O governo, ao tirar esses decretos
sem autorização do Congresso, violou a lei orçamentária. Isso está previsto na
Constituição como crime de responsabilidade. Quanto às pedaladas, a Lei de
Responsabilidade Fiscal tem entre seus pilares a proibição de utilização dos
bancos públicos como fonte de financiamento para despesas primárias dos
governantes. O que o governo fez foi justamente utilizar, em escala bilionária,
o Banco do Brasil, o BNDES e a Caixa como fontes de recursos. No processo do
impeachment, depois do despacho de Eduardo Cunha, ficou apenas o Banco do
Brasil — mesmo assim, em valores bilionários. Em 2015, o tesouro começou o ano
devendo R$ 11 bilhões ao BB.
E aquele argumento do governo de que, com o julgamento do
TCU, em outubro de 2015, mudou-se o entendimento?
Nunca houve entendimento anterior para ser mudado em outubro
de 2015. Sempre houve a lei proibindo a conduta. Os governos anteriores não
faziam isso. Nem Lula nem FHC fizeram algo sequer parecido, nem de longe. O que
esse governo fez é diferente na razão, na intenção e na finalidade.
Explique melhor.
Houve um plano de maquiagem de contas fiscais para usar os
bancos, em escala bilionária, como fonte de recursos para ampliar despesas. O
exemplo do Fies é gritante. Havia R$ 5 bilhões de dotação em 2013, passa para
R$ 12 bilhões em 2014, que é ano eleitoral, e em 2015 corta-se o programa para
R$ 5 bilhões. Conheço estudantes que tiveram de entrar na Justiça para renovar
o Fies de um ano para o outro. Em 2014, tinha para todo mundo. Em 2015,
começaram a criar critérios. Isso aconteceu porque não havia mais os R$ 12
bilhões para renovar o financiamento.
Se o Congresso não tivesse aceitado o impeachment, seria
diferente?
Uma coisa é a rejeição das contas. Impeachment passa por uma
instância política, o Congresso poderia entender isso e não afastar a
presidente. Esse juízo na cabeça do parlamentar é livre. Cada parlamentar é um
juiz. Isso não iria desqualificar o trabalho. Mas, quanto às contas, sim. Se as
contas não fossem rejeitadas, podiam rasgar a LRF (Lei de Responsabilidade
Fiscal).
O ministro Meirelles disse que vai abrir a caixa-preta do
BNDES. O senhor disse no Twitter que “assim espera”.
Exato. Porque o BNDES foi utilizado como fonte de
financiamentos subsidiados em larguíssima escala, inédita. Foram R$ 500 bilhões
em seis anos.
É outra Lava Jato…
Pode ser, quando abrir a caixa-preta, a gente vai descobrir.
O TCU sempre tem muita dificuldade de auditar, porque eles negavam
reiteradamente as informações pedidas, a ponto de o BNDES entrar com mandado de
segurança no Supremo para não entregar informações ao TCU. Essa dificuldade
também acontecia com a Petrobras… Também, havia resistência ao controle. Quando
se pedia informação, vinha incompleta, ou embaralhada.
Mas no caso do BNDES, há indícios?
Esperamos que se abra a caixa-preta e que a gente descubra.
Tem dinheiro público que não se sabe quem pegou, como pagou. Tudo isso é feito
sem transparência. Então eu não posso dizer previamente que houve roubalheira,
mas eu também não posso descartar. É dinheiro público, tem de ter
transparência.
De que forma as futuras gerações sentirão as consequências
das pedaladas?
As consequências virão na forma de perda de investimentos.
Vamos levar alguns anos para recuperar o PIB de 2011. Tivemos 3,9% de recessão
no ano passado, tem algo semelhante a isso neste ano, 3,8%. São os dois piores
anos desde a crise de 1929. Isso leva alguns anos para recompor.
Mas o que as pedaladas têm a ver com isso?
Primeiro, as pedaladas foram um endividamento ilícito, que
não era para ter ocorrido. Se você se endividar na sua casa além da sua
capacidade de renda, em algum momento você vai ter que parar de fazer tudo que
você faz. E esse é um ponto importante da história, porque as pedaladas só
atingiriam o efeito esperado se contassem com a omissão do BC. Quando o BC
registra a dívida, você tem um aumento do passivo que tem impacto no alcance da
meta fiscal. Então, para você fingir que está atingindo a meta, você nem pode
pagar, nem pode mandar o dinheiro no banco. Nem pode registrar isso no Banco
Central.
Qual o impacto dessas manobras?
Além de ter um aumento inesperado da dívida pública, que
certamente compromete o futuro das gerações, há perda de credibilidade do BC,
do próprio governo, do país. Os investidores internacionais perguntam: a gente
pode confiar nos números do Brasil? A Argentina perdeu muito da credibilidade
maquiando inflação. Quando você perde credibilidade, leva anos para recuperar.
Isso provoca o encarecimento no custo de captação de recursos para todos os
agentes econômicos. Se a Petrobras for buscar recursos no exterior, vai pagar
juros mais altos. É um custo que a sociedade brasileira vai suportar por anos
até que a gente tenha eventualmente um quadro fiscal saneado, como tínhamos até
2009.
E qual foi a motivação dessas manobras?
A motivação disso tudo foi a expansão do gasto fiscal para
gerar uma percepção de governo realizador.
Já de olho nas eleições?
Evidentemente. Porque você começa a ter sinais de perda de
arrecadação, de queda de arrecadação em 2013. Então o governo decide não fazer
uma retração da nossa despesa pública. Isso vai ser percebido como um fracasso
atribuível ao governo.
Dilma responderá a processo criminal?
Poderá ocorrer, isso depende de o procurador-geral avaliar.
Porque a Lei 10.028 introduz tipo na Lei de Responsabilidade para
compatibilizar essa lei com as proibições da LRF. Além disso, ela introduz
tipos penais no código penal, crimes contra as finanças públicas.
Ela responderá por atos nas esferas judicial e penal?
Na minha avaliação, tanto em uma esfera como na outra,
deveria ocorrer a investigação do processo. Mas são julgadores distintos. O
presidente Collor sofreu impeachment, e depois o STF entendeu que, no aspecto
penal, as provas não eram tão robustas para uma acusação penal. E fez isso sem
invalidar o processo de impeachment.
Mas, se isso ocorrer, não vai forçar o discurso petista de
que foi um golpe?
Essa é uma avaliação que não me cabe fazer. Eu acho que
golpe não há, o instrumento está previsto na Constituição, o rito foi definido
pelo Supremo.
O governo está com situação fiscal delicada. Há risco de os
crimes se repetirem?
Espero que não, que o presidente Temer não vá editar
decretos afrontando a Constituição, nem use bancos federais para financiar as
despesas públicas. O crime de responsabilidade da presidente não foi ter mudado
a meta, nem ter proposto a alteração da meta, foi não ter esperado o Congresso
fazer a alteração da meta para ela editar decretos.
Há participação de Temer nas pedaladas?
Não. Em 2015, não há nenhum decreto do vice-presidente,
assumindo a Presidência interinamente, nas mesmas condições dos decretos da
presidente Dilma. Ela emitiu dezenas de decretos, mas os considerados
inconstitucionais são esses seis que foram emitidos a partir do momento em que
o descumprimento da meta é inequívoco. Em 2014, três decretos foram assinados
por Temer nas mesmas condições daqueles assinados por Dilma, que foram
considerados irregulares pelo TCU. O vice-presidente, o presidente da Câmara, o
presidente do Senado, o presidente do STF — que compõem a linha sucessória —,
se qualquer um desses assume interinamente, para assinar decretos, não pode ser
atribuída a ele essa falha. Porque ele não tem gestão nenhuma sobre a máquina.
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