Publicado no Jornal Pequeno em 28/11/2009
CÉSAR BENJAMIN, 55, militou no movimento estudantil
secundarista em 1968 e passou para a clandestinidade depois da decretação do
Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse ano, juntando-se à resistência
armada ao regime militar. Foi preso em meados de 1971, com 17 anos, e expulso
do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou a fundar o PT, do qual se
desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a vice-presidente na chapa liderada
pela senadora Heloísa Helena, do PSOL, do qual também se desfiliou. Trabalhou
na Fundação Getulio Vargas, na Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, na Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. É editor
da Editora Contraponto e colunista da Folha.
Os filhos do Brasil – CÉSAR BENJAMIN
A PRISÃO na Polícia do Exército da Vila Militar, em setembro
de 1971, era especialmente ruim: eu ficava nu em uma cela tão pequena que só
conseguia me recostar no chão de ladrilhos usando a diagonal. A cela era nua
também, sem nada, a menos de um buraco no chão que os militares chamavam de
“boi”; a única água disponível era a da descarga do “boi”. Permanecia em pé
durante as noites, em inúteis tentativas de espantar o frio. Comia com as mãos.
Tinha 17 anos de idade.
Um dia a equipe de plantão abriu a porta de bom humor.
Conduziram-me por dois corredores e colocaram-me em uma cela maior onde estavam
três criminosos comuns, Caveirinha, Português e Nelson, incentivados ali mesmo
a me usar como bem entendessem. Os três, porém, foram gentis e solidários
comigo. Ofereceram-me logo um lençol, com o qual me cobri, passando a usá-lo
nos dias seguintes como uma toga troncha de senador romano.
Oriundos de São Paulo, Caveirinha e Português disseram-me
que “estavam pedidos” pelo delegado Sérgio Fleury, que provavelmente iria
matá-los. Nelson, um mulato escuro, passava o tempo cantando Beatles, fingindo
que sabia inglês e pedindo nossa opinião sobre suas caprichadas interpretações.
Repetia uma ideia, pensando alto: “O Brasil não dá mais. Aqui só tem gente
esperta. Quando sair dessa, vou para o Senegal. Vou ser rei do Senegal”.
Voltei para a solitária alguns dias depois. Ainda não sabia
que começava então um longo período que me levou ao limite.
Vegetei em silêncio, sem contato humano, vendo só quatro
paredes -“sobrevivendo a mim mesmo como um fósforo frio”, para lembrar Fernando
Pessoa- durante três anos e meio, em diferentes quartéis, sem saber o que
acontecia fora das celas. Até que, num fim de tarde, abriram a porta e
colocaram-me em um camburão. Eu estava sendo transferido para fora da Vila
Militar. A caçamba do carro era dividida ao meio por uma chapa de ferro, de
modo que duas pessoas podiam ser conduzidas sem que conseguissem se ver. A vedação,
porém, não era completa. Por uma fresta de alguns centímetros, no canto
inferior à minha direita, apareceram dedos que, pelo tato, percebi serem
femininos.
Fiquei muito perturbado (preso vive de coisas pequenas). Há
anos eu não via, muito menos tocava, uma mulher. Fui desembarcado em um dos
presídios do complexo penitenciário de Bangu, para presos comuns, e colocado na
galeria F, “de alta periculosia”, como se dizia por lá. Havia 30 a 40 homens,
sem superlotação, e três eram travestis, a Monique, a Neguinha e a Eva. Revivi
o pesadelo de sofrer uma curra, mas, mais uma vez, nada ocorreu. Era Carnaval,
e a direção do presídio, excepcionalmente, permitira a entrada de uma televisão
para que os detentos pudessem assistir ao desfile.
Estavam todos ocupados, torcendo por suas escolas. Pude
então, nessa noite, ter uma longa conversa com as lideranças do novo lugar:
Sapo Lee, Sabichão, Neguinho Dois, Formigão, Ari dos Macacos (ou Ari Navalhada,
por causa de uma imensa cicatriz que trazia no rosto) e Chinês. Quando o dia
amanheceu éramos quase amigos, o que não impediu que, durante algum tempo, eu
fosse submetido à tradicional série de “provas de fogo”, situações armadas para
testar a firmeza de cada novato.
Quando fui rebatizado, estava aceito. Passei a ser o Devagar.
Aos poucos, aprendi a “língua de congo”, o dialeto que os presos usam entre si
para não serem entendidos pelos estranhos ao grupo.
Com a entrada de um novo diretor, mais liberal, consegui
reativar as salas de aula do presídio para turmas de primeiro e de segundo
grau. Além de dezenas de presos, de todas as galerias, guardas penitenciários e
até o chefe de segurança se inscreveram para tentar um diploma do supletivo.
Era o que eu faria, também: clandestino desde os 14 anos, preso desde os 17, já
estava com 22 e não tinha o segundo grau. Tornei-me o professor de todas as
matérias, mas faria as provas junto com eles.
Passei assim a maior parte dos quase dois anos que fiquei em
Bangu. Nos intervalos das aulas, traduzia livros para mim mesmo, para aprender
línguas, e escrevia petições para advogados dos presos ou cartas de amor que
eles enviavam para namoradas reais, supostas ou apenas desejadas, algumas das
quais presas no Talavera Bruce, ali ao lado. Quanto mais melosas, melhor.
Como não havia sido levado a julgamento, por causa da
menoridade na época da prisão, não cumpria nenhuma pena específica. Por isso
era mantido nesse confinamento semiclandestino, segregado dos demais presos
políticos. Ignorava quanto tempo ainda permaneceria nessa situação.
Lembro-me com emoção – toda essa trajetória me emociona, a
ponto de eu nunca tê-la compartilhado – do dia em que circulou a notícia de que
eu seria transferido. Recebi dezenas de catataus, de todas as galerias,
trazidos pelos próprios guardas. Catatau, em língua de congo, é uma espécie de
bilhete de apresentação em que o signatário afiança a seus conhecidos que o
portador é “sujeito-homem” e deve ser ajudado nos outros presídios por onde
passar.
Alguns presos propuseram-se a organizar uma rebelião,
temendo que a transferência fosse parte de um plano contra a minha vida. A essa
altura, já haviam compreendido há muito quem eu era e o que era uma ditadura.
Eu os tranquilizei: na Frei Caneca, para onde iria, estavam
os meus antigos companheiros de militância, que reencontraria tantos anos
depois. Descumprindo o regulamento, os guardas permitiram que eu entrasse em
todas as galerias para me despedir afetuosamente de alunos e amigos. O Devagar
ia embora.
São Paulo, 1994. Eu estava na casa que servia para a produção
dos programas de televisão da campanha de Lula. Com o Plano Real, Fernando
Henrique passara à frente, dificultando e confundindo a nossa campanha.
Nesse contexto, deixei trabalho e família no Rio e me
instalei na produtora de TV, dormindo em um sofá, para tentar ajudar. Lá pelas
tantas, recebi um presente de grego: um grupo de apoiadores trouxe dos Estados
Unidos um renomado marqueteiro, cujo nome esqueci. Lula gravava os programas,
mais ou menos, duas vezes por semana, de modo que convivi com o americano
durante alguns dias sem que ele houvesse ainda visto o candidato.
Dizia-me da importância do primeiro encontro, em que
tentaria formatar a psicologia de Lula, saber o que lhe passava na alma, quem
era ele, conhecer suas opiniões sobre o Brasil e o momento da campanha, para
então propor uma estratégia. Para mim, nada disso fazia sentido, mas eu não
queria tratá-lo mal. O primeiro encontro foi no refeitório, durante um almoço.
Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula e o
publicitário Paulo de Tarso em frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de
Lula) e outro publicitário brasileiro que trabalhava conosco, cujo nome também
esqueci. Lula puxou conversa: “Você esteve preso, não é Cesinha?” “Estive.”
“Quanto tempo?” “Alguns anos…”, desconversei (raramente falo nesse assunto).
Lula continuou: “Eu não aguentaria. Não vivo sem boceta”.
Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência
como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido.
Chamava-o de “menino do MEP”, em referência a uma organização de esquerda que
já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência do “menino”, que
frustrara a investida com cotoveladas e socos.
Foi um dos momentos mais kafkianos que vivi. Enquanto ouvia
a narrativa do nosso candidato, eu relembrava as vezes em que poderia ter sido,
digamos assim, o “menino do MEP” nas mãos de criminosos comuns considerados
perigosos, condenados a penas longas, que, não obstante essas condições, sempre
me respeitaram.
O marqueteiro americano me cutucava, impaciente, para que eu
traduzisse o que Lula falava, dada a importância do primeiro encontro. Eu não
sabia o que fazer. Não podia lhe dizer o que estava ouvindo. Depois do almoço,
desconversei: Lula só havia dito generalidades sem importância. O americano
achou que eu estava boicotando o seu trabalho. Ficou bravo e, felizmente,
desapareceu.
Dias depois de ter retornado para a solitária, ainda na PE
da Vila Militar, alguém empurrou por baixo da porta um exemplar do jornal “O
Dia”. A matéria da primeira página, com direito a manchete principal, anunciava
que Caveirinha e Português haviam sido localizados no bairro do Rio Comprido
por uma equipe do delegado Fleury e mortos depois de intensa perseguição e
tiroteio. Consumara-se o assassinato que eles haviam antevisto.
Nelson, que amava os Beatles, não conseguiu ser o rei do
Senegal: transferido para o presídio de Água Santa, liderou uma greve de fome
contra os espancamentos de presos e perseverou nela até morrer de inanição,
cerca de 60 dias depois. Seu pai, guarda penitenciário, servia naquela unidade.
Neguinho Dois também morreu na prisão. Sapo Lee foi
transferido para a Ilha Grande; perdi sua pista quando o presídio de lá foi
desativado. Chinês foi solto e conseguiu ser contratado por uma empreiteira que
o enviaria para trabalhar em uma obra na Arábia, mas a empresa mudou os planos
e o mandou para o Alasca. Na última vez que falei com ele, há mais de 20 anos,
estava animado com a perspectiva do embarque: “Arábia ou Alasca, Devagar, é
tudo as mesmas Alemanhas!” Ele quis ir embora para escapar do destino de seu
melhor amigo, o Sabichão, que também havia sido solto, novamente preso e dessa
vez assassinado. Não sei o que aconteceu com o Formigão e o Ari Navalhada.
A todos, autênticos filhos do Brasil, tão castigados, presto
homenagem, estejam onde estiverem, mortos ou vivos, pela maneira como trataram
um jovem branco de classe média, na casa dos 20 anos, que lhes esteve ao
alcance das mãos. Eu nunca soube quem é o “menino do MEP”. Suponho que esteja
vivo, pois a organização era formada por gente com o meu perfil. Nossa
sobrevida, em geral, é bem maior do que a dos pobres e pretos.
O homem que me disse que o atacou é hoje presidente da
República. É conciliador e, dizem, faz um bom governo. Ganhou projeção
internacional. Afastei-me dele depois daquela conversa na produtora de
televisão, mas desejo-lhe sorte, pelo bem do nosso país. Espero que tenha
melhorado com o passar dos anos.
Mesmo assim, não pretendo assistir a “O Filho do Brasil”,
que exala o mau cheiro das mistificações. Li nos jornais que o filme mostra
cenas dos 30 dias em que Lula esteve detido e lembrei das passagens que
registrei neste texto, que está além da política. Não pretende acusar, rotular
ou julgar, mas refletir sobre a complexidade da condição humana, justamente o
que um filme assim, a serviço do culto à personalidade, tenta esconder.
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