sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Eufemismos médicos

A moda de se usar eufemismos em tudo por causa do diabo do politicamente correto anda contaminando meio mundo. O absurdo é tão grande que, em detrimento da própria saúde do ser humano, até os órgãos mais importantes, como a OMS, estão mais preocupados em desqualificar as doenças como tal do que propriamente em buscar suas curas.

Ainda hoje li um texto de perguntas e respostas abordando a Síndrome de Down em que, logo na primeira resposta, afirma-se não se tratar de uma doença, mas sim de uma “alteração genética que faz a pessoa ter três cromossomos 21 em vez de dois”. Considerando-se que doença é, por definição, uma “alteração biológica do estado de saúde de um ser (homem, animal etc.), manifestada por um conjunto de sintomas”, a coisa se complica para os politicamente corretos.

Ou ainda, “desordem ou mau funcionamento de um órgão, parte, estrutura ou sistema do corpo resultante do efeito de erros genéticos ou de resultados de infecção, venenos, deficiência nutricional ou desequilíbrio, toxicidade, ou fatores ambientais desfavoráveis”.

Bom, essas são as definições tradicionais. Acontece que a paranoia é tanta para tentar explicar o que é doença hoje que o US National Institutes of Health, órgão oficial do governo americano, por exemplo, usa três mil palavras e dezoito mil caracteres para tal. Uma xaropada insuportável só para se adequar ao politicamente correto, mas que não leva a lugar nenhum.

“Doença, incapacidade e suas definições

À primeira vista, a resposta à pergunta ‘O que é uma doença?’ É simples. A maioria de nós sentimos que temos uma compreensão intuitiva da ideia, atingindo mentalmente imagens ou memórias de resfriados, câncer ou tuberculose. Mas um olhar através de qualquer dicionário médico logo mostra que articular uma definição satisfatória da doença é surpreendentemente difícil. E também não é de grande ajuda definir doenças como o oposto da saúde, uma vez que as definições de saúde são igualmente complicadas. A Organização Mundial da Saúde diz que a saúde é ‘um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade’ (OMS, 1946). Essa definição tem sido elogiada por abraçar um ponto de vista holístico, mas fortemente condenada por sero escancaradamente utópica.

Pode não ser fácil articular o que a doença é, mas nós gostamos de pensar que seja, pelo menos, todos sabem quando vimos uma. Infelizmente, isso é problemático também. Noções de saúde são altamente dependentes do contexto: como doenças humanas só existem em relação às pessoas, e as pessoas vivem em contextos culturais variados. Estudos em antropologia médica e sociologia têm demonstrado que se as pessoas que acreditam ser doentes variam de acordo com classe, gênero, etnia e fatores menos óbvios tais como a proximidade ao apoio de membros da família.

O que conta como uma doença também muda ao longo do tempo histórico, em parte como resultado do aumento da expectativa de saúde, em parte devido a mudanças na capacidade de diagnóstico, mas principalmente para uma mistura de razões sociais e econômicas. Um exemplo é a osteoporose, que depois de ser oficialmente reconhecida como uma doença pela OMS, em 1994, mudou de para ser uma parte inevitável do envelhecimento normal de uma patologia. Outro exemplo bem conhecido é a homossexualidade, que viajou na direção oposta à osteoporose através do território médico e saiu pelo outro lado. Depois de ser redefinida durante o século XIX como um estado em vez de um ato, na primeira metade do século XX, a homossexualidade era vista como um distúrbio endócrino que requer tratamento hormonal. Mais tarde a sua identidade patológica foi alterada, uma vez que foi reclassificada como um transtorno mental orgânico tratável por eletrochoque e às vezes por neurocirurgia. Finalmente, em 1974, foi oficialmente ‘despatologizada’ quando a Associação Americana de Psiquiatria a removeu dos estados doenças enumeradas no Diagnostic and Statistical Manual de IV (Bayer & Spitzer, 1982). (...)”

E por aí afora. Vejam meu caso, por exemplo: quando eu comecei a ter pânico, em 1978, o mal simplesmente não existia na literatura médica, tanto que virei cobaia do presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, que tentou me tratar com psicanálise, além dos torpedos e antidepressivos que, ou me deixavam lesado ou com mais pânico ainda. Pelo desconhecimento, eu era tratado como depressivo, coisa que eu nunca fui. Preferi ficar com meu pânico.

Pouco depois, nos meados de 80, descobriram a tal “Doença do Pânico” - mas não a cura -, que logo trataram de rebatizar como “síndrome” (conjunto de sinais e sintomas observáveis em vários processos patológicos diferentes e sem causa específica) - e nada de cura. Não satisfeitos com “síndrome”, sei lá por que, rebatizaram o troço de “transtorno” (qualquer perturbação da saúde), ainda sem cura específica apesar de alguns avanços na em relação à causa.

Hoje, parece que sossegaram no “transtorno” e já há registros de medicamentos eficazes - como o que eu tomo há 12 anos - em muitos casos (na maior parte das vezes é questão de adaptação pessoal a uma determinada droga - “não há doenças, há doentes”).

E por acaso esses batismos todos mudaram minha vida? Fiquei mais feliz em ser considerado transtornado em vez de doente?

Enfim, voltando aos pudores ridículos, chamar alguém de doente parece que virou xingamento a ponto de se mudar a terminologia médica. Ora, um sujeito como eu, que penou 25 anos com o pânico, a ponto de ficar engaiolado em casa por medo de sair, só pode ter sido um doente (e ainda o sou, já que tomo remédios para controlar minhas sinapses) , assim como os portadores da Síndrome de Down, igualmente cheios de limitações. E qual é a vergonha nisso?

Hoje perde-se muito tempo com essas baboseiras inúteis. E tempo é dinheiro, e dinheiro é, no caso, saúde.

2 comentários:

  1. Que tal incluir no CID (Código Internacional de Doenças) o Transtorno do Politicamente Correto?

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  2. Transtorno Governamental:
    http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/02/1741101-governo-corta-r-234-bilhoes-no-orcamento-e-ve-retracao-maior-do-pib.shtml

    Governo revisou a previsão de queda do PIB, de 1,9 para 2,9. Podemos esperar SEIS.

    Transtorno Prefeitural:
    http://www.oantagonista.com/posts/a-ciclovia-mais-cara-do-mundo

    O Ministério Público de São Paulo requereu à Justiça a condenação de Fernando Haddad por improbidade administrativa na construção de um trecho de 12,4 quilômetros de ciclovia entre o Ceagesp e o Ibirapuera, ao custo de R$ 54,8 milhões.

    Cada quilômetro custou aos paulistanos R$ 4,4 milhões.

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